Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Alimentado diariamente, o extremismo de direita é visto como 'gripezinha'

Contra ameaças radicais, o sistema democrático precisa ser defendido radicalmente

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Uma grande falta de educação —evito sempre que posso— é a atitude do “eu não disse?", do "eu não avisei?”. Tem muito a ver com a alegria diante da desgraça alheia. E, afinal de contas, é de esperar que a própria realidade tenha servido de lição para quem se recusou a seguir os meus conselhos.

Desconfio, entretanto, que daqui a alguns anos metade da espécie humana estará dizendo coisa parecida para a outra metade.

Aviso não tem faltado com relação a três coisas óbvias: o coronavírus, o aquecimento global e o fim da democracia.

No caso da pandemia, o fenômeno espanta, mas tem alguma explicação.

Claro que pegar a doença deveria causar bastante arrependimento nos que deixaram de usar máscara ou se aglomeraram por qualquer motivo.

Acontece que, para boa parte dessa gente, os sintomas foram leves; a história da “gripezinha”, veiculada por Bolsonaro, confirmou-se para eles —e quem ainda não se contaminou conhece mais sobreviventes do que pessoas que realmente se deram mal.

Se se deu mal, era velho ou pobre. Logo, que se dane.

Há outro fator envolvido.

Você liga a televisão, e estão entrevistando um epidemiologista. Nunca pensei que houvesse tantos no Brasil. E você ouve a mesma coisa: usem máscara, evitem aglomerações, lave as mãos, tome cuidado.

Isso vai se tornando um ruído de fundo, uma fala que, de tão insistente, não muda mais a atitude de ninguém.

Seria preciso uma atitude mais radical, do tipo mostrar com detalhes o procedimento de intubação, entrevistar pessoas sofrendo seriamente de algum sintoma, acompanhar uma amostra de contaminados e ver o que acontece com cada um deles ao longo dos dias.

Não fazem isso com as embalagens de cigarro?

Por outro lado, acho que seria importante divulgar pesquisas mostrando qual a porcentagem dos casos em que tudo se reduziu mesmo a uma “gripezinha” —e quais os grupos de idade ou renda em que isso foi mais comum. Será que não há dados sobre isso? Talvez se evite essa informação, por medo de que possa estimular mais imprudência ainda… Não sei.

Quanto ao aquecimento global, não tenho grande esperança. Avisos se renovam há muitíssimo tempo.

É que usar máscara e se vacinar custa menos do que diminuir drasticamente o consumo de petróleo, carne e tudo o mais. A pandemia se vinga mais depressa do que o meio ambiente e ataca o corpo de cada um — não só alguma aldeia litorânea nas Filipinas ou no Espírito Santo.

Colagem com foto de da cabeça de cachorro mostrando os dentes com recortes. Os recortes dão a impressão de que o cachorro está com uma focinheira. O fundo é vermelho
Publicada nesta quarta-feira, 13 de janeiro de 2021 - André Stefanini/Folhapress

Mas o ceticismo é o mesmo, e a sua lógica também. Os interesses do lucro, do prazer e do consumo se sobrepõem à sorte dos que não têm hospital privado ou moram, sei lá, na África ou numa encosta de morro qualquer.

Vem então a terceira indiferença, o terceiro caso de “estou pouco ligando” para os avisos repetidos.

Refiro-me às ameaças de Trump, Bolsonaro e Mourão. Nenhum deles escondeu seu desapreço pela democracia e sua disposição para dar um golpe assim que houver condições para isso.

Quando a coisa começa a pegar mal, eles recuam. Foi o que aconteceu no meio do ano em Brasília, e agora com a invasão do Capitólio.

Mas a reação geral, até aqui, tem sido a de um ceticismo quase tão perigoso quanto o que se aplica à Covid e ao meio ambiente.

“Ah, não é tanto assim… Não vai acontecer nada…” O extremismo de direita, alimentado diariamente com muito dinheiro e tecnologia internacional, é visto como uma “gripezinha”. Logo passa.

A mentalidade dos que gostam da democracia parece que se amoleceu e sofreu influência do mesmo neoliberalismo que até agora triunfou no pensamento econômico. É o “laissez-faire” —tudo vai se arranjar sozinho, não precisamos fazer nada, “as instituições funcionam”.

As instituições funcionam, na minha opinião, quando conseguimos fazer que funcionem. Trump deveria ser deposto e preso. Cada extremista de internet tem de ser fichado, monitorado e punido.

Com inúmeras falhas e sinais de incompetência, os países desenvolvidos levaram a sério a ameaça do terrorismo islâmico. Temos fanáticos, assassinos, nazistas e torturadores fazendo festa no Brasil e nos Estados Unidos, sem um décimo da reação necessária.

Acho bem provável que Bolsonaro venha logo a pagar por seus crimes. Mas não adianta ficar esperando que tudo se resolva. Contra uma ameaça radical, a democracia precisa ser defendida radicalmente.

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