Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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As mudanças foram enormes de 1901 a 1921; agora, o passo é arrastado

Pode ser só impressão minha, mas acho que este século está andando muito devagar

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Pode ser só impressão minha, mas acho que este século está andando muito devagar. Já estamos em 2021, e nos últimos 20 anos não aconteceu tanta coisa assim. Compare com o século 20. De 1901 a 1921, o mundo ficou irreconhecível.

As mulheres de espartilho, chapéu de plumas, sombrinha e vestidão preto até os pés deram lugar a melindrosas com saia acima do joelho, cabelo curtinho e cílios postiços.

Matronas de carruagem foram substituídas por aviadoras que fumavam nas horas vagas. E que votavam, também, em diversos países. A Austrália começou em 1902, a Finlândia, em 1906, a Inglaterra, em 1918 e os Estados Unidos, em 1920.

Enquanto isso, em 2021 estamos comemorando a aprovação do direito ao aborto na Argentina, sem previsão no caso brasileiro. Política? Em 1910, só havia quatro repúblicas na Europa: França, Portugal, Suíça e San Marino.

Vinte anos depois, o quadro tinha mudado radicalmente. As dinastias seculares dos Romanov, na Rússia, dos Habsburgo, na Áustria, e dos Hohenzollern, na Alemanha, estavam enterradas.

Não falo do terremoto que foi a revolução bolchevique. Sua radical novidade, ainda fresca em 1921, foi também um fator de barbárie, e aquele falso futuro se esfacelou.

De qualquer modo, uma pessoa acostumada aos padrões de 1900 tinha tudo para ficar de cabelo em pé 20 anos depois.

O que temos agora? As democracias se veem desafiadas pelo populismo autoritário de Trump, Bolsonaro e outros. Mas não se trata, por enquanto, de um abalo como os que se viram entre 1901 e 1921.

No começo do século 20, Pissarro e Monet ainda exploravam as nuances do impressionismo, e Picasso ainda era bem comportado. Em 1921, a arte já tinha explodido com o urinol de Duchamp. O cinema, surgindo do zero, já se estabelecera plenamente, com Chaplin, Fritz Lang e Cecil B. de Mille.

O que de novo tivemos no século 21? A Netflix, o aperfeiçoamento dos seriados, os efeitos de computador? Até os robôs marcam passo.

Em resumo, o mundo de 2021 não ficou muito diferente do de 2001. A maior revolução tecnológica destes tempos, a internet, já existia. Os celulares inteligentes, o streaming de música, o Waze, são subprodutos.

Continuamos demorando 11 horas de avião para chegar à Europa, continuamos pesquisando soluções para o câncer e o Alzheimer, continuamos consumindo plástico, carne e gasolina. Nem o papel acabou.

De significativo, nos últimos 20 anos deixamos de usar o talão de cheques. O hábito de fumar pertence claramente ao passado. Mas a legalização da maconha e outras drogas vai a passos de tartaruga. Verdade que o vegetarianismo cresce.

Tento me lembrar de outras mudanças, mas verifico que, para o bem ou para o mal, o século 21 ainda não começou.

Três acontecimentos importantes se deram até aqui: o atentado do 11 de Setembro, com o início da “guerra contra o terrorismo”; a crise de 2008, que se prolonga sem mexer muito com a hegemonia ideológica dos neoliberais; e agora, a pandemia.

Nada que se compare, creio, ao impacto da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa.

Dá para prever, nos próximos dez anos, o crescimento do trabalho em casa, o declínio de uma infinidade de empregos (barbeiros, quem diria?), o fim do papel-moeda, uma revalorização da presença do Estado na economia, novas bolhas e estouros financeiros.

Mas, em matéria de mudança radical, acho que será preciso esperar mais um pouco.

Uma coisa das dimensões de 1914-1918 só vai vir com um verdadeiro apocalipse ambiental. Ou, Deus nos livre, com um conflito nuclear com China, Estados Unidos, Irã e Coreia do Norte pelo meio.

Hipóteses terríveis, mas que aí sim modificariam a face do mundo, se ainda houver mundo. Fora isso, a maior mudança que prevejo para o século 21 ainda está para acontecer.

Olhando um pouco além da política e da economia, o século passado ficará como o século das mulheres. Mudou-se (claro que ainda falta muito) um quadro de opressão com milênios de existência.

Cem anos foram pouco tempo, se pensarmos que desde a pré-história a humilhação, a violência, o mando masculino prosseguia quase inalterado.

Quem sabe o 21 marque um processo semelhante no que diz respeito aos negros e às demais etnias sob dominação dos brancos. O caminho da igualdade entre os sexos foi sendo aberto com pequenas e grandes modificações, com muitas e várias resistências; a igualdade entre as raças não tem por que não ir adiante.

São os meus votos, para este ano e para os próximos.

Erramos: o texto foi alterado

Em 1912 eram quatro as repúblicas na Europa (França, Portugal, San Marino e Suíça), e não duas. O texto foi corrigido.

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