Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Sistema de ódio tem o objetivo de matar gente e desumanizar o resto

Cem anos depois de inventado o termo, estamos às voltas com robôs de novo

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Há cem anos, uma peça de teatro apresentava ao mundo a palavra “robô”. Foi escrita pelo tcheco Karel Capek (1890-1938), e se chamava “R. U. R.” —esta a sigla da empresa que produzia os tais autômatos.

Não eram bem robôs de lata, como víamos nos antigos desenhos animados. Correspondiam mais a androides, feitos de proteína sintetizada em laboratório. A fábrica faz sucesso, liberando a humanidade de qualquer tipo de trabalho.

A palavra “robô” entrou para o vocabulário comum, mas a peça de Capek ficou bem menos conhecida. Não achei tradução para o português e, para dizer a verdade, acho que não faz muita falta.

A área da ilustração está dividida em 231 quadrados (formados a partir do cruzamento de 11 linhas e 21 colunas) delimitados por linhas pretas. Alguns quadrados tem fotografias em preto e branco de pedaços do rosto, como olhos, bocas, nariz e sobrancelhas; outros estão preenchidos por cor sólida, amarelo claro, branco ou azul.
Publicada nesta quarta-feira, 24 de março de 2021 - André Stefanini/Folhapress

O primeiro ato tem um tom sarcástico, com as surpresas da jovem Helena ao visitar a diretoria da fábrica. Os robôs são tão perfeitos, e os executivos, tão calculistas e objetivos, que ela tem dificuldade em distinguir quem é humano de quem não é.

O problema é que a peça termina perdendo o que tinha de original. À medida que os robôs se aperfeiçoam, e ganham sentimentos humanos, transformam-se numa massa operária comum —e a previsível revolta das máquinas contra os homens, que ocupa boa parte da história, torna-se igual às revoluções de verdade que aconteciam, ou ameaçavam acontecer, no começo do século passado.

Avançamos o suficiente, em matéria de progresso tecnológico, para saber que o mais interessante não é o que faremos com os robôs, mas o que eles são capazes de fazer com a gente.

Não digo apenas em termos de desemprego: nesse aspecto, os robôs não diferem de nenhuma máquina.

O que eu não imaginava, e não sei até onde pode chegar, é esse novo tipo de robô, sem pernas, sem braços e sem rodinhas, de que trata a jornalista Patrícia Campos Mello em “A Máquina do Ódio” (editora Companhia das Letras).

Foi ela quem revelou, na Folha, o dispositivo criado para disparar mensagens em massa durante a campanha presidencial de 2018. Como se sabe, logo se tornou vítima da máquina que denunciou, sendo insultada pela ralé bolsonarista e pelo genocida em pessoa.

O livro explica de que modo a tecnologia utilizada pelo “gabinete do ódio” fez o Brasil entrar no surto psicótico que elegeu Bolsonaro. Foi o mesmo sistema de lavagem cerebral, de exploração do ressentimento e produção de ignorância que funcionou nas vitórias de Trump, dos Estados Unidos, de Narendra Modi, na Índia, e do brexit, no Reino Unido.

Patrícia Campos Mello conta com leveza, sem acúmulo de detalhes técnicos, e sobretudo com admirável serenidade, a história desse novo tipo de manipulação.

Ia dizer “manipulação de massas”, mas talvez a diferença esteja precisamente aí.

O velho totalitarismo se impunha sobre os cidadãos com o objetivo de aniquilar todas as diferenças: visava a criar uma população uniformizada, cega e disciplinada como um exército.

Os robôs digitais atuam sobre outro tipo de sociedade —dividida em tribos, regionalismos, grupos de consumidores, facções religiosas, setores profissionais, cada um deles alvejado por mensagens diferentes.

Pode-se criar um bolsonarismo antinordestino em São Paulo, e um bolsonarismo antipaulista no Nordeste; haverá o gay bolsonarista, fanático da livre empresa, e o antigay bolsonarista, defensor da tradição bíblica.

É, se vale o paradoxo, um “totalitarismo fragmentado”; o líder, o mito, não é necessariamente detentor de uma “verdade” válida para todos; a coisa se torna tão irracional que, para apoiá-lo, não é nem mesmo necessário acreditar em tudo o que ele diz.

O pecuarista destruidor de florestas pode ser entusiasta da vacina, a fanática da gripinha não tem nada a ver com o fundamentalista do mercado financeiro. Pouco importa: Bolsonaro é a arma que cada um imagina usar conforme suas próprias necessidades.

Sobre esses cérebros sem coerência nenhuma, a máquina digital continua agindo —apesar das providências legais que o trabalho de Patrícia Campos Mello ajudou a inspirar.

Movido por robôs, o sistema de ódio, ignorância e preconceito mata milhares de pessoas por dia. Mais que isso: tira a humanidade de muitos dos que não morreram de Covid. Refiro-me àqueles que nem ligam para a morte de seus semelhantes. São robôs também, criados por robôs, a serviço de interesses genocidas.

Poderiam idolatrar um presidente-robô, mas não: a imbecilidade animalesca, barraqueira e tosca do genocida constitui, tristemente, a “face humana” dessa total inumanidade.

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