Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Ninguém precisa ser o príncipe Philip para ter um enterro personalizado

No Brasil, no entanto, as valas coletivas continuam, numa Idade Média de peste, fanáticos e charlatães

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Para a minha cerimônia fúnebre, talvez eu escolha as músicas. Aos próximos, já avisei que quero ser cremado. Mas paro por aí.

O príncipe Philip, de acordo com o exaustivo noticiário destes dias, fez bem mais. Não escolheu apenas o carro fúnebre —o tal Range Rover verde que apareceu nas fotografias.

Ao longo dos últimos anos, dedicou bastante do seu escasso tempo aos detalhes da coisa toda.

Primeiro, mudou o tom de verde do veículo —tinha de ter exatamente o matiz militar que correspondesse a seus tempos de serviço.

Mas o príncipe foi além, e isso me assusta um bocado. Desenhou ele mesmo os pinos de metal, com revestimento de borracha, que possibilitaram o perfeito encaixe do esquife na carroceria do jipe. Temia, sem dúvida, que o caixão escorregasse.

Existe alguma coisa de perverso, não sei, nesse detalhismo todo. É como se ele estivesse preparando caprichosamente um belo susto cômico, um trote macabro —uma tampa de mola que de repente abrisse o caixão— e, em seguida, reprimisse a ideia, cuidando de evitar todo acidente que alguém (a saber, ele mesmo) pudesse imaginar.

Ao mesmo tempo, o planejamento parece ser mostra de certa sanidade. Pois o príncipe Philip, ao longo da vida, nunca mandou em nada. No funeral, teve, literalmente, a última palavra. Foi uma compensação.

Mas o príncipe não é um caso isolado. Os hábitos da sociedade de consumo exercem sua influência post-mortem.

peixe rosa sobre fundo verde
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho de 21 de abril de 2021 - André Stefanini/Folhapress

Funeral num jipe? Não, o gosto do freguês pode ser outro. Na Inglaterra, os entusiastas da Volkswagen podem encomendar uma Kombi para servir de carro fúnebre; inteirinha dourada, ou prateada, como você preferir.

Passou sua vida em cima de uma moto? Sem problema. Fundada pelo reverendo Paul Sinclair em 2002, a Motorcycle Funerals Ltd. anuncia seus serviços. Uma belíssima motoqueira usando jaqueta de couro preta conduz uma Harley Davidson, uma Triumph ou uma Suzuki Hayabusa (você escolhe), com uma carrocinha lateral, de duas rodas, onde o caixão terá trajeto seguro até o destino desejado.

Os militantes do ciclismo também podem expressar, ainda uma vez, sua opinião. Bicicletas, puxando caixões ecológicos (e leves) de vime ou papelão, disponibilizam-se para seu último descanso.

E se a pessoa for, ao mesmo tempo, fã de Kombis e de bicicletas? A Volkswagen Funerals atende a essa minoria do público, oferecendo um “rack” na capota da Kombi para que a bicicleta não fique abandonada.

Mas, como estamos na Inglaterra, o enfoque tradicional não foi abandonado. Por menos de R$ 20 mil, você contrata uma carruagem vitoriana, com quatro cavalos de penacho, e um distinto homem de cartola nas rédeas do processo.

Conhece-se o caso de Gana, país onde a tradição é criar os mais bizarros tipos de caixão de defunto. O pescador profissional encomenda o seu, em forma de tainha, ou lata de atum. O professor universitário cria um caixão imitando livro encadernado. O tabagista impenitente vai para a cova numa flip-box de Camel ou Marlboro.

Aviões, elefantes, cenouras. Nikes, foguetes, seringas: tudo é autoexpressão e, quem sabe, festa. No oposto dessa tradição, a Inglaterra também oferece serviços para quem detesta funerais —o próprio ou o dos outros.

Você liga para a companhia, eles retiram o defunto da sua casa, cuidam da coisa toda sem choro nem vela e, dali a uma ou duas semanas, lhe devolvem uma urna simples com as cinzas do infeliz. É uma espécie de delivery reversa. A menos que nem disso você faça questão, e aí eles mesmo espalham as cinzas em qualquer lugar.

O pior é que entre as empresas encarregadas disso está a Co-op, uma rede de supermercados.

São os dois polos da coisa: de um lado, enterros personalizados, para motoqueiros, filatelistas, seguidores da religião druida, maníacos da ópera italiana. De outro, o anonimato completo, a redução marciana a um punhado de cinzas.

Não sei em Gana; mas o que há de comum nos dois processos talvez seja o extremo individualismo contemporâneo. Ninguém cuidará de mim (cremação delivery), de modo que é melhor eu mesmo cuidar dos detalhes do enterro.

Mesmo morto, eu me manifesto. Gritarei quem sou, quem fui, quem eu quis ser, ao grupo esparso que, no cemitério, checa as mensagens do celular.

Ruim? No Brasil, as valas coletivas e os enterros noturnos continuam, numa Idade Média de peste, fanáticos e charlatães.

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