Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Stravínski, 50 anos depois de sua morte, ainda não se livrou dos críticos

Ele foi o Picasso da música, passando por todos os estilos sem deixar de ser inconfundivelmente ele mesmo

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Comemoram-se os 50 anos da morte de Igor Stravínski; há mais de cem anos, em 1913, ele marcou a história da música clássica com o grande escândalo da “Sagração da Primavera”, em que a gritaria e a brutalidade da plateia superaram toda a violência selvagem do balé que estreava naquela noite.

Eu tinha uns 12 anos quando ele morreu, em 1971 —de modo que talvez eu pertença à última geração que ainda via em Stravínski um músico “contemporâneo”, moderníssimo; demorei bastante para encarar a “Sagração” como coisa normal, bacana de ouvir. Tive de me aproximar aos poucos.

Para se acostumar com a música dele, o melhor seria começar com “Petrushka”, outra música para balé, escrita em 1911. O arranjo para piano feito por Stravínski, “Três Movimentos de Petrushka”, acho que tem tudo para agradar quem está tomando pé no assunto: é uma peça viva, colorida, contagiosa.

Daí eu passaria para o movimento final do “Pássaro de Fogo” (1911), ou para o terceiro movimento da “Sinfonia dos Salmos”, de 1930, quando Stravínski já tinha abandonado seu estilo mais vanguardista. Acho difícil que consiga desagradar alguém; alterna um ritmo seco, austero, no “Laudate” do coro masculino, com um “Aleluia” que é simples paraíso.​

“Pulcinella”, de 1920, é uma adaptação feita por Stravínski de peças barrocas; pode se transformar quase em música de fundo para anúncio de sabonete, se não repararmos nos deslocamentos e asperezas que o compositor acrescentou à partitura original do século 18.

Mas toda a vasta produção de Stravínski fica meio sem eixo de gravidade se não ouvirmos sua maior obra, e a “Sagração da Primavera” se torna muito mais acessível, a meu ver, com a coreografia de Pina Bausch (há trechos disponíveis no YouTube).

Desconfio até que o escândalo da estreia em 1913 teria sido menor se não fosse a coreografia inventada por Nijínski, uma espécie de antibalé com as dançarinas com os pés voltados para dentro, pulando como bonecas.

A ideia, claro, era sublinhar o primitivismo russo da história, em que uma virgem é escolhida para dançar até a morte, num sacrifício pagão aos deuses da colheita.

Ainda mais ácida e percussiva, a música de “Les Noces” (“As Núpcias”), de 1923, não perdeu sua estranheza fascinante —maximizada na versão com instrumentos folclóricos e vozes camponesas do Ensemble Pokróvski (selo Nonesuch).

ilustração do compositor russo Igor Stravinski vestindo um blazer vermelho
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho publicada no jornal impresso em 27 de abril de 2021 - André Stefanini/

Ultramoderno (em 1913), neoclássico (na década de 1930) e depois dodecafônico, Stravínski foi o Picasso da música, passando por todos os estilos sem deixar de ser inconfundivelmente ele mesmo.

Sua música passou por maus bocados nas mãos dos críticos —não só os mais conservadores, que não entenderam nada de suas inovações no começo do século, mas também dos mais avançados e radicais.

É assim que, para Theodor Adorno (1903-1969), a obra de Stravínski era reacionária no seu culto ao primivitismo, na sua renúncia à subjetividade, no seu elogio da mecanização. Com a história da virgem sacrificada, Stravínski não se identifica com a vítima, mas com a autoridade que a aniquilou.

Renunciando ao desenvolvimento melódico e harmônico, outras peças dele “se mantêm perpetuamente suspensas, na perfeição sem conteúdo de um acrobata”, diz Adorno em “A Filosofia da Nova Música” (ed. Perspectiva).

Sadomasoquismo, neurose obsessiva, esquizofrenia, “hebefrenia” (indiferença, impassibilidade): a linguagem de Adorno contra Stravínski assemelha-se à dos críticos reacionários que condenavam toda arte moderna, fosse de quem quer que fosse.

A análise é inteligentíssima, e cada frase de Adorno parece verdadeira. Sua opinião ainda tem muitos seguidores.

Mas vejo no YouTube cenas de documentários sobre Stravínski, filmadas com ele já velhinho, muito pequeno e sorridente, fazendo piadinhas sem graça, mudando de idioma a todo momento.

Subjetividade aniquilada, visão primitiva e a-histórica do mundo? Talvez essa visão mude se não considerarmos o significado de uma obra específica, como a “Sagração”, mas o conjunto da produção stravinskiana.

Na verdade, ocorreria o oposto: uma subjetividade, a do próprio Stravínski, sobrevivendo a todos os estilos, mudando de língua e de país o tempo todo. E a maior vítima do primitivismo, naquela noite de 1913, não foi a bailarina que fazia o papel da virgem —foi ele mesmo, amargo até na velhice diante das incompreensões que sofreu.

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