Motociclistas, caminhoneiros, ruralistas, milicianos, policiais, evangélicos. Existem naturalmente mais bolsonaristas para além desses setores.
Mas, como notaram Daniel Carvalho e Ricardo Della Coletta na Folha de 19 de junho, o presidente aposta mais do que nunca em “acenos a grupos específicos” e em “discursos radicais”.
É difícil entender, como sempre, a lógica dessa atitude. Com a esquerda e o lulismo empenhados em ampliar suas alianças, e sem nenhum candidato viável na “terceira via”, o mais sensato seria investir na imagem de “Jairzinho paz e amor”, recuperando espaço na faixa menos extremista do eleitorado.
Mas Bolsonaro parece incapaz disso. Não pertenço ao grupo dos que dizem, contra tantas evidências, que “ele não tem nada de burro”.
O fato de alguém chegar à Presidência da República não é atestado, a meu ver, de habilidade ou esperteza. O caso de Bolsonaro foi a conjunção de fatores muito excepcionais.
Ele continua sem ter a menor noção do que está fazendo —e desperdiçou tolamente a chance de fortalecer seu projeto.
Poderia continuar com todos os seus absurdos, acabar com a Amazônia, com a cultura, com a Constituição, com o Estado e até com o Bolsa Família, se tivesse levado a Covid-19 a sério e promovido uma grande campanha de vacinação. Seu poder cresceria com isso, em vez de estar ameaçado.
Na crise, sua resposta é outra. Há as explicações psicológicas mais imediatas (e, para mim, verdadeiras): psicopatia, instinto de morte, maldade genocida.
Mas o fato de Bolsonaro procurar apoio em grupos específicos e palanques radicais sugere outras duas explicações.
A primeira, bem de acordo com seu perfil, é a de que espera pôr o país em convulsão e arranjar motivos para um golpe. A segunda, que não exclui a anterior, é a seguinte. Longe de ser um “não político”, Bolsonaro tem o DNA perfeito do deputado federal ou estadual brasileiro.
No atual sistema, é comum que candidatos a cargos proporcionais se elejam como representantes de grupos de interesse específicos.
Se no seu estado houver um número expressivo de motociclistas, policiais militares, despachantes, motoristas de táxi, enfermeiros ou qualquer outra categoria profissional, não é impossível que
você atinja uma boa votação.
Quando o sistema é distrital (misto ou puro, tanto faz), o candidato a deputado tem de alcançar a maioria dos votos na sua região, disputando com outros poucos candidatos do mesmo lugar.
Ele teria de ampliar suas propostas para conseguir apoio do máximo de pessoas daquele lugar —velhos, jovens, negros, desempregados, o que for. Um “programa” para tanta gente assim muito provavelmente exigiria aderência à plataforma geral de um partido político.
Assim, a eleição para deputado federal num distrito tende a reproduzir, em ponto menor, a eleição para o Executivo nacional. O deputado de um distrito tende a ser escolhido por suas ligações partidárias ou, talvez, por seu apelo pessoal mais amplo —e não, como acontece no Brasil, graças aos votos de uma ou duas categorias espalhadas pelo Estado inteiro.
Bolsonaro se elegeu para a Câmara dos Deputados nesse sistema. Teve votos de categorias específicas —policiais, evangélicos, milicianos, fanáticos de direita, saudosos do regime militar.
Claro que um fanático da bala ou da Bíblia pode ganhar, em certas circunstâncias, um cargo executivo. E um extremista pode, com sorte, virar deputado no sistema distrital. Mas, em teoria, é no Legislativo,
dentro de um sistema proporcional, que esse tipo de político tem acolhimento mais fácil.
A última eleição foi uma exceção completa à regra. Bolsonaro não tinha partido; presidentes anteriores tinham sido governadores, ministros, vice-presidentes ou figuras de expressão nacional, como Lula.
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