Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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'Meu Pai' sabe bem retratar Alzheimer sem apelar para cenas clichês de sofrimento

Filme de Florian Zeller que deu a Anthony Hopkins o Oscar de melhor ator mostra a realidade dos sintomas da doença

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Estava com medo de ver “Meu Pai”, filme de Florian Zeller que deu a Anthony Hopkins o —merecidíssimo— Oscar de melhor ator deste ano.

O tema, como se sabe, é o mal de Alzheimer. Claro que não é fácil assistir ao desmoronamento cerebral do personagem e às imensas dificuldades emocionais enfrentadas por sua filha (Olivia Colman, melhor do que nunca).

Mas “Meu Pai” sabe equilibrar as coisas, alternando situações insuportáveis com outras muito doces e até engraçadas. Não cai nessa espécie de pornografia do sofrimento humano em que se especializaram alguns cineastas do norte europeu.

Talvez por se basear numa peça de teatro, o filme de Florian Zeller não perde de vista o interesse intelectual (e não apenas emotivo) da história.

Há um lado de enigma, de história de detetive na situação vivida por Anthony Hopkins, e o espectador compartilha das suas dúvidas.

Desenho de homem branco idoso
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho publicada na Folha em 15 de junho de 2021 - André Stefanini

Quem é essa mulher que entrou pela porta? É a filha dele mesmo? Ou é outra pessoa fingindo ser a filha? E como é que ela entrou agora em casa, se disse que estava viajando para outro país? Aliás, ela está entrando na minha casa ou sou eu quem está morando na casa dela?

As perguntas do personagem (chamado Anthony, como o próprio ator) se acumulam e são as mesmas do espectador, que felizmente vai aos poucos pondo as peças no lugar.

Sem dúvida, não sabemos exatamente o que uma pessoa com Alzheimer avançado está pensando e sentindo, deixando de pensar e deixando de sentir. O filme sugere, em todo caso, que não se trata de
um estado de sofrimento constante, de desespero profundo.

Na maior parte do tempo, Anthony parece viver num estado de surpresa. Ele continua a confiar nas próprias percepções —é o mundo, e não ele, que parece desorganizado e fora dos eixos.

“Ontem mesmo aquele quadro estava na parede, onde será que o guardaram?” Tudo parece uma charada a ser resolvida, mas não um sinal de que sua cabeça deixou de funcionar.

Nesse sentido, o sofrimento do Alzheimer parece em boa parte ser de ordem intelectual, sem atingir propriamente a alma ou o coração. As coisas pioram, e “Meu Pai” é bastante convincente nisso, quando a estranheza do personagem se transforma em medo.

É o medo que temos num pesadelo: uma pessoa totalmente estranha está na cozinha de casa; quem é? O que veio fazer? Por que está sorrindo para mim?

Sem saber que se tratava apenas da enfermeira ou do genro, Anthony vê aquela presença como uma ameaça. Já tive pesadelos parecidos.

Muitos outros tipos de sofrimento, contudo, são raros quando sonhamos. Lembro-me de ter chorado em sonhos; estranhamente, isso me acontecia ao rever pessoas que já morreram.

Mas também sonhei que determinada pessoa, atualmente viva, estava morta. Ou tinha morrido há anos. Não sei se, ao saber disso no sonho, senti a dor de perdê-la; minha reação —como a de alguém com Alzheimer– foi de surpresa, estranhamento, ou mesmo indiferença diante de um mero decreto fatual.

Vai ver que isso acontece só comigo —mas, no sonho, o coração me parece dormir mais profundamente do que o cérebro. É o estranho, não o triste, o elemento mais forte de um sonho.

Claro que, em outros momentos, Anthony percebe que está com Alzheimer e tenta disfarçar. Todos nós conhecemos essa situação —o doente está com uma dúvida completamente absurda, cai em si, dá uma risadinha e finge que se lembrou ou sempre soube da resposta.

Alguns segundos depois, ele já não se recorda do problema. De modo que suas angústias, por maiores que sejam, têm duração tão curta quanto sua memória.

Já a filha do personagem, e de modo geral os parentes de alguém com Alzheimer, conhecem dores de outra espécie. Ouvem insultos e recriminações que, por vezes, são obras-primas de crudelíssima lucidez.

Pior ainda, recriminam-se o tempo todo; é impossível suportar o próprio pai, a própria mãe. Há o trabalho físico de cuidar de um velho. Deixá-los numa instituição será fonte de culpa (mas não tenho dúvida de que é o melhor a fazer).

O paciente de Alzheimer, imagino, sofre menos de culpa e de remorso do que a pessoa em plena posse da memória.

Não quero dizer com isso que são maiores as dores de quem continua lúcido. Mas que, se não é possível lutar contra o Alzheimer, importa lutar, ao menos, pela nossa felicidade, durante o tempo que tivermos de lucidez.

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