Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Biden e a Madame Morcego reavivam o que seriam fake news da origem da Covid

Tese de que o vírus vazou de um laboratório chinês já foi ideia repreendida e identificada como beisterol de Trump

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Um efeito interessante da pandemia, ao menos para mim, foi o de que a ciência se valorizou bastante ao longo de todos estes meses. Claro que existem os que negam o vírus, contestam a vacinação e defendem a cloroquina. Há sempre uma minoria de loucos, idiotas e enganados que resistem a tudo —até à própria Covid-19, em alguns casos.

O fato é que, quando a coisa aperta, a imprensa “mainstream” se fortalece em comparação com as boatarias de internet. A medicina “convencional” ganha mais seguidores do que pajelanças alternativas, e os fatos se impõem sobre as teorias da conspiração.

Mas o mundo dá voltas.

morcego de asas abertas
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho publicada em 1º de junho de 2021 - André Stefanini/Folhapress

Fico sabendo agora que não é tão absurda a tese de que a Covid-19 vazou de um laboratório chinês. Há um ano, quem sustentasse isso tinha tudo para se identificar com o besteirol de Donald Trump. Eis que a ideia ressurge dentro do governo Biden.

Algumas circunstâncias, de fato, merecem consideração.

Além de ter um mercado livre em que se serve sopa de morcego, a cidade de Wuhan é também sede de um centro mundial de pesquisa de virologia.

Normal pensar que o vírus vazou desse laboratório. Quando se começou a falar nisso, em fevereiro do ano passado, a revista The Lancet publicou uma carta de cientistas denunciando “teorias da conspiração”.

Mas um artigo do jornalista Nicholas Wade, no Daily Telegraph do último sábado, levanta dúvidas interessantes.

O abaixo-assinado para o Lancet, diz ele, foi organizado pelo doutor Peter Daszak, presidente de uma organização americana que, entre outras atividades, financia... o laboratório de virologia de Wuhan!
Lá se desenvolvem estudos no sentido de criar “ganhos de função” nos vírus que estão presentes em organismos de animais.

Sabe aqueles chifrinhos que aparecem nos desenhos de como é o coronavírus? São pontinhas de proteína. Os pesquisadores as modificam para que, em vez de morcegos ou ratos, passem a “entrar” nas células de gatos, camelos ou humanos.

Não que essas pesquisas sejam feitas de propósito para contaminar pessoas, diz o artigo. O interesse é ver como um vírus se modifica a ponto de contaminar humanos, em vez de seu animal de origem.

Isso pode ocorrer sem intervenção humana, claro. Mas as mutações se dão aos poucos. Quando houve a primeira epidemia de Sars, em 2003, os cientistas identificaram cerca de 25 “passos” nas transformações do vírus até ele chegar a nós. No caso da Covid-19, nenhum sinal até agora.

Mais: semanas antes de surgirem avisos sobre o surto, três pessoas que trabalhavam no laboratório de Wuhan foram internadas com sintomas “compatíveis com a Covid-19”.

A China, como é sabido, e como se faz em tantos países, resistiu a dar o primeiro alarme. O médico Li Weinlang foi acusado pela polícia de “espalhar boatos” quando, ao lado de outros colegas do hospital central de Wuhan, falou sobre o perigo.

Por sua vez, o jornal The Times conta que, em 2015, o Instituto de Virologia de Wuhan publicou um estudo sobre o coronavírus em morcegos, seguindo protocolos de segurança de “nível dois”. A saber, só luvas e aventais.

Conduzindo a pesquisa estava o nosso doutor Peter Dazsak e a virologista chinesa Shi Zhengli, que já ficou conhecida como “Madame Morcego”.

Preocupada com a possibilidade de um acidente na atual pandemia, ela afirma ter revisto todos os registros de pesquisa; os sequenciamentos dos vírus encontrados em quem se infectou não batiam com os do laboratório.

Muito bem. A China permitiu uma investigação da OMS, mas não pretende cooperar com mais uma.
Há muita coisa cheirando a “teoria da conspiração”, sem dúvida: uma “Madame Morcego”, ao estilo dos folhetins de Fu Manchu; o “perigo amarelo”; a misteriosa China, com seus sorrisos, silêncios e torturas…

Mas um laboratório de virologia, logo em Wuhan? Não é coincidência demais?

Que seja. Uma coisa é acidente em laboratório. Outra coisa é delirar sobre planos chineses de infectar o mundo. E uma terceira coisa, acrescento, é sustentar que tudo veio da sopa de morcego e deixar a culpa nas costas do cozinheiro.

Volto à ciência.

De um laboratório pode vir não só a cura, como também a doença. Mais raramente, essa. O mito de Prometeu já indicava, em todo caso, que o preço do conhecimento sempre é altíssimo.

Consolo-me imaginando que, de tanto comer o fígado do herói, a águia também tenha saído com uma bela contaminação.

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