Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Algumas orelhas são ótimas para máscaras de Covid, outras nem tanto

Vejo que a natureza foi injusta para quem nasceu com o órgão muito mole e, por isso, tem sofrido em meio à pandemia

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Um dos efeitos da pandemia, pelo que tenho sentido, foi o de revelar diferenças insuspeitas entre os seres humanos.

Não me refiro só às coisas mais óbvias, como a desigualdade no acesso a tratamento médico, ou o aparecimento de divisões ideológicas surpreendentes entre amigos e pessoas da família.

Com a obrigatoriedade das máscaras, descobri que a humanidade também se divide entre quem tem orelha mole e quem tem orelha dura. E que, para minha tristeza, faço parte do primeiro grupo.

orelhas amarelas de diversos formatos sobre fundo rosa
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho publicada nesta terça, 10 de agosto - André Stefanini/Folhapress

Não é bom. Por mais que eu estique o elastiquinho, tentando fazer com que fique rente ao crânio, ele começa a deslizar. Pressiona a orelha, que então se dobra como um guardanapo.

Olho-me no espelho e questiono os nomes que se aplicam a determinados tipos de massa italiana. As orechiette, de acordo com os cardápios de cantina, são redondinhas e côncavas, lembrando no
máximo a orelhinha de um urso de pelúcia.

Sempre me chamou a atenção, por outro lado, o fenômeno das orelhas em forma de cappelletti: quero dizer, aquelas cuja borda exterior não se assemelha à de uma pizza tradicional, gordinhas, apalpáveis.
As orelhas em forma de cappelletti (eu as chamo assim, pelo menos) têm a borda totalmente grudada ao resto, sobrando apenas um vinco profundo.

Há também as orelhas sem borda nenhuma —e são das boas, pelo menos em matéria de dureza.
As minhas não. No mundo da gastronomia, com alguns poucos minutos de máscara elas se transformam no macarrão gravatinha: completamente amassadas, em estado de defesa, como um molusco que quiséssemos cutucar.

A ausência de uma estrutura firme na orelha traz desvantagens. A máscara ameaça escorregar, ou melhor, despregar-se do meu rosto. No começo, tentei alguns artifícios. Enrolando o elástico na haste dos óculos, por exemplo, pude obter alguma estabilidade —mas tirar os óculos ou a máscara se tornou muito mais complicado.

Claro, estou falando da máscara normal, aquela azulzinha. Outras, como aquela branca e bicuda, dispõem de um super-elástico que se prende na parte de trás da cabeça.

E como prende! Fico aflito de não respirar direito, e qualquer ajuste traz a possibilidade de se ver o elástico deslizando ao longo do meu cocoruto, no contrafluxo do cabelo.

É quando meus dedos verificam outra realidade desagradável para a qual eu estava desatento. O elástico não está perdido entre os cabelos que eu julgava ter: cobre, numa tira ínfima, uma careca de padre que o espelho raramente revelava.

Volto à mascarazinha azul. Perdi a conta das vezes em que a usei do avesso. Alguém com senso prático inventou de introduzir um aramezinho para sustentá-la no dorso do nariz. Pressiono furiosamente o meio dos óculos em cima do arame —nada de deixá-los debaixo da máscara. Não adianta —as lentes ficam embaçadas do mesmo jeito. E quanto maior a tensão na parte frontal da máscara, mais o elástico protesta, e minhas orelhas ganham o tom arroxeado e a forma de canoa de um coração de bananeira decaído.

Enquanto isso, o time das orelhas fortes resiste ao vento, à chuva, às picadas de inseto (deve ser difícil penetrar aquela brava cartilagem). Algumas pessoas foram feitas para usar máscara de Covid.

A coisa me parece injusta —ainda mais porque na minha família, como o nome indica, o gene dominante é o das orelhas vigorosas, sem timidez. Cabanas, por vezes. Mas nunca moles.

Uma foto antiga mostrava meu pai ainda criança, com seus quatro irmãos em escadinha, todos levemente de perfil. Era considerada uma foto bem bonita lá em casa —até minha atenção fixar-se, numa “gestalt” de autocrítica, na exagerada dimensão auricular dos cinco Coelhos.

Comentava-se em voz baixa que um deles, voltando de longa viagem, fizera os ajustes cirúrgicos necessários para aproximar a orelha do osso parietal. O intervalo, tornado mínimo, seria, aliás, perfeito para inserir o elástico da máscara hoje em dia.

Bem, restaria com ele o problema do nariz também. Disso não me queixo (ops) muito. Substituí, quase sempre, os óculos por lentes de contato, que não embaçam. Já um clipe, uma grampeada, uma correção na orelha vai entrando em minhas cogitações.

Pensar que, quando vieram as notícias da Covid, eu estava certo que em dois ou três meses tudo ia passar. Vão-se as orelhas —com suas múltiplas variantes—, mas a pandemia fica.

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