Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Doidos que invadiram o Capitólio e apoiam Trump são vistos de perto em filme

Até certo ponto normais e tranquilos, invasores passam a acreditar em loucuras incentivados pelo ex-presidente

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Muita reportagem e pesquisa ainda deve estar sendo feita sobre a multidão que invadiu o Capitólio, em janeiro deste ano, para melar o jogo das eleições americanas.

Um documentário da BBC, "Four Hours at the Capitol", ajuda a conhecer um pouco melhor o caso. Não faltaram, é óbvio, câmeras de celular e circuitos internos de TV para registrar a invasão.

As imagens são nítidas ao extremo, tomadas a um nariz de distância do policial ou do maluco envolvido no conflito. E há também entrevistas com alguns personagens, meses depois. Aqui as coisas ficam realmente curiosas.

Três ou quatro defensores de Trump dão seus depoimentos; com certeza, os mais alucinados não devem ter topado nenhuma entrevista.

O fato é que eles, à primeira vista, não parecem loucos nem raivosos. Assim como existe a "banalidade do mal", existe também a "normalidade do fanatismo". Alguns entrevistados se encaixam no perfil majoritário dos manifestantes: brucutus brancos e gordos, carecas e de barba.

Outros dois poderiam perfeitamente passar por hippies ou simpatizantes da esquerda. O mais jovem, de cabelo louro bem moderninho e óculos John Lennon, faz o tipo Brad Pitt.

O segundo, magro, barbudo e com cachinhos, parece só um maconheiro inofensivo. Confirma plenamente a aparência, aliás. Foi dos primeiros a entrar no Capitólio, depois de alguém quebrar o vidro de uma janela dos fundos.

Naquele momento, eram só uns 20 gatos pingados a pisar nos corredores de mármore do Congresso. Tinham vencido três ridículas barreiras de policiais; entram, sem acreditar no que aconteceu. O edifício é enorme, há longos corredores e lustres magníficos. Nossos heróis ficam boquiabertos e não sabem para onde ir.

Fazem então o que toda "pessoa normal" faria: tiram selfies, andam a esmo, como turistas. Mais adiante, veem-se debaixo da portentosa cúpula do palácio. O carinha de cabelos cacheados toma a iniciativa.

Tinha trazido sete baseados no bolso. Oferece a seus companheiros de armas. Um idoso de boné, esse sim trumpista típico (gordo, careca, cavanhaque branco) aceita de primeira.

Não se vê ódio no rosto dos que fazem parte desse grupo. Incapacidade mental, sobretudo. Eles obedeceram à convocação do presidente "deles", foram indo, indo… E terminaram lá.

Os invasores entrevistados no documentário parecem até certo ponto normais e tranquilos. Têm uma noção da realidade cotidiana —descrevem suas sensações com bastante clareza. Só quando a entrevista avança um pouco é que se percebe a loucura. O mesmo "cidadão tranquilo" que estava contando sua experiência turística passa a justificar seus atos: "Por anos, 800 mil crianças são raptadas e escravizadas sexualmente no país… Por isso eu apoio Trump".

Ilustração representando sombras de dois grupos de pessoas que se batem com cassetetes e escudos
Publicada em 26 de outubro de 2021 - André Stefanini

Claro que o próprio ex-presidente dá o tom desses delírios. Os manifestantes, diz ele, não estavam em conflito com a polícia… "Todos se abraçavam, se beijavam!" Não é o que se vê, claro, nas cenas mais tensas do documentário. Enquanto uns poucos fumavam maconha no saguão principal e passeavam pelo Senado, outro grupo, bem mais enraivecido, forçava a entrada no plenário da Câmara, ainda cheio de deputados e deputadas encolhidos atrás das mesas.

Imagino que, se os invasores fossem negros e latinos, teriam sido mortos aos montes. A prudência dos policiais era visível.

Mesmo assim, um segurança disparou —não sei se é coincidência, mas matou uma mulher. Seja como for, obedeceu-se à regra: quando eles atiram, atiram para matar. Com essa vítima, a invasão do plenário foi sustada na hora.

A terceira frente foi o caso mais interessante, do ponto de vista teórico. A grande massa estava fora do edifício, mas descobriu uma passagem, uma espécie de túnel, com largura para três ou quatro pessoas. Do lado de dentro, os policiais se espremiam para contê-los.

Sem o uso de armas, o que prevaleceu foi o empurra-empurra, o corpo a corpo, uma espécie grupal de sumô, o "eros" da vida em rebanho. Só quando chegam tropas estaduais, de metralhadora em punho, o impasse se resolve.

É como se, numa época de manipulação virtual e celulares, a luta política retornasse à sua fisicalidade essencial. Poderia ter sido muito mais violenta do que foi. Com pandemia e distanciamento social, tudo se traduziu em carne, em força humana, em corpo. Não sei se isso tem algum efeito benéfico; mas, para quem vive em pleno delírio e conspiração, imagino que toda aquela cretinice tenha conhecido algum contato com o real.​

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