Tive sorte desta vez. O anúncio do prêmio Nobel de Literatura foi na quinta-feira passada, de modo que me sobrou tempo para ler um livro de Abdulrazak Gurnah, o nada conhecido vencedor deste ano.
Escrevendo em inglês e professor de literatura numa universidade britânica, ele nasceu em Zanzibar. Se eu não sabia nada de Gurnah, devo dizer desse arquipélago que sua existência, até a última semana, também não era das mais certas para mim.
Fazia ideia de um lugar mais ou menos ficcional, como Xanadu ou Shangri-lá, ponto de encontro, quem sabe, entre Vasco da Gama e Aladim.
O Google me leva a uma ilha africana no oceano Índico, encostada na Tanzânia, que nos meus tempos de colecionador de selos se chamava Tanganica. Trata-se de um lugar altamente turístico, capaz de rivalizar com as Seychelles ou Dubai.
Mais concretamente, no caso que nos interessa, Zanzibar livrou-se do domínio britânico na década de 1960; um processo sangrento (entre 5.000 e 12 mil mortos) instalou ali a hegemonia soviética.
“Gravel Heart”, ou coração de cascalho, romance de Gurnah publicado em 2017, trata dos efeitos desse acontecimento sobre a família do adolescente Salim, que é o narrador da história.
Do ponto de vista literário, não encontrei nada ali que justificasse a concessão do Nobel. O texto é cheio de descrições genéricas, sem sinal de qualquer percepção própria da realidade.
Tudo se assemelha a um relato rotineiro, ou a uma carta que somos obrigados a escrever para a família contando o que fizemos no mês passado.
O interesse humano do livro é, provavelmente, o que mais contou para a comissão do prêmio, e aí há mais o que comentar.
A população de Zanzibar é muçulmana, o que no romance não significa nenhum fundamentalismo; a religião parece, ali, ser antes de tudo um caminho para aceitar o próprio destino.
É uma sociedade tradicional, de pequenos comerciantes em casas com fogão a lenha, que conhece a modernização típica dos anos 1960: radinhos tocando música americana, uma banda de rock aqui e ali, o advento da TV colorida, mulheres aprendendo a dirigir automóvel.
Esse processo, e a violência política que o acompanha em contraponto, não difere muito do que acontecia na América Latina na mesma época. Mas os romances latino-americanos parecem, em geral, tratar do tema com mais exasperação. Enfocam mais de perto a figura dos ditadores, ou então se entregam à alegoria e ao fantástico.
Em “Gravel Heart”, a arbitrariedade dos governantes se faz sentir apenas por suas consequências na família do protagonista. Um avô, erudito islâmico, foge para Dubai com a mulher e as filhas. Seu primogênito, sem muita profissão, teima em ficar na terra natal, e (para não contar muito da história) se recolhe numa revolta depressiva e silenciosa.
Salim, o filho dele, também não tem muito o que fazer da vida e acaba emigrando para a Inglaterra e vegeta na rotina de estudante relapso e trabalhador mal pago.
O principal interesse de “Gravel Heart” talvez seja o de mostrar personagens que ficam no meio do caminho entre o imigrante e o refugiado político.
Posso imaginar que o imigrante, em geral, chega a um país estrangeiro com um objetivo claro e, se está fugindo da pobreza, seu instinto de sobrevivência funciona como um motor para ir sempre em frente, sem tempo demais para a saudade e a depressão.
O caso do refugiado político é muito mais difícil —é improvável que ele tenha um “projeto” para o tempo que irá passar fora de seu país. Terá de lutar pela própria existência, não na perspectiva de crescer “a partir do zero”, como o imigrante, mas sim a partir de uma dívida, de um déficit, de um “menos que zero”.
O imigrante, podemos pensar, não tinha nada, ou pouca coisa; o refugiado já tinha sua vida estabelecida, e foi arrancado dela.
Mas há uma infinidade de casos intermediários, e esse romance de Abdulrazak Gurnah mostra, na primeira pessoa, a situação de um jovem que tem pouco a esperar tanto do país natal quanto da terra de adoção. Ao mesmo tempo em que depende da família, está desligado dela —e a própria família já é coisa sem real unidade ou influência.
Poderia, na verdade, ser o retrato de qualquer adolescente, imigrante ou não, muçulmano ou não. O jovem talvez seja, com frequência, um expatriado de si mesmo —já sem infância e sem lugar muito certo para onde fixar o seu futuro: Xanadu, Shangri-lá, Zanzibar quem sabe.
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