Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Poesia de Caleb Femi discute racismo e guerra entre polícia e tráfico

Poeta nascido na Nigéria e recentemente premiado retrata mundo de ameaças e execuções simuladas

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A foto poderia ser de uma superquadra de Brasília, mas é de um conjunto habitacional azaradíssimo num bairro pobre de Londres. Claro, aquilo está longe de ser uma favela. Mas racismo policial, guerra de traficantes e pencas de adolescentes assassinados fazem parte do cotidiano dali, como em qualquer grande cidade brasileira.

Uma diferença é que, na Inglaterra, há dezenas de prêmios para escritores, e Caleb Femi, britânico nascido na Nigéria em 1990, acaba de ganhar o de melhor livro de estreia para poesia neste ano.

"Poor", ou pobre, foi editado pela Penguin, e entremeia os poemas com fotografias tiradas pelo próprio autor. Retratam a vida e o ambiente dos jovens negros do bairro de Peckham, famoso pela precariedade econômica e social de seus habitantes.

Mas o livro poderia também se chamar "Concreto". Questiona seguidamente a cegueira do urbanismo modernista, que em Londres como em outros lugares construiu mega edifícios de aparência presidiária, achando que criava soluções "humanas" para a habitação popular.

Do que é feito o concreto? O poeta responde, enumerando muitas coisas: cimento, areia, chiclete, cordão de isolamento policial, Ovomaltine derramado, água sanitária... Quais suas propriedades? Recolho duas respostas: a capacidade de resistir ao peso de um cortejo fúnebre, capacidade de absorver o som dos socos de uma mãe desesperada.

Essa ligação entre maternidade e gueto aparece ainda com maior força imagética em outro poema, onde o sangue de um adolescente assassinado escorre pelo concreto do conjunto habitacional; é como se fosse um parto, diz Femi, e a dor dessa morte é um dente podre "que tem de ser arrancado".

Quem gostaria, afinal, de ter um filho para que dali a uns 15 anos ele seja assassinado pela polícia ou por traficantes? Terrivelmente, surge a ideia de que cada mãe é uma criadora de mortos, e de mortes.

Em "A Primeira Vez em que Você Pega numa Arma", Caleb Femi descreve uma sensação de segurança e acolhimento. O cabo do revólver "era suave/ como o seio da minha mãe. Minhas gengivas/ ainda se lembravam daquela sensação/ e transmitiram para minha mão essa memória."

É assim, nessa ideia de perpétuo nascimento para a morte, que a sucessão de chefes de gangue assassinados se traduz em linguagem bíblica: Fulano, que gerou Beltrano, que gerou Sicrano...

Ilustração representando um bloco retangular negro e tombado com uma cruz desenhada em sua face
Publicada em 16 de novembro de 2021 - André Stefanini

O livro apresenta então uma sequência de retratos dos "durões", "duronas" e das vítimas da vizinhança, um pouco como as letras de milonga em que Jorge Luis Borges homenageava ironicamente os malfeitores da velha Buenos Aires.

É o caso de um tal Marlon: "quando a polícia finalmente/ pegou ele, dizem/ que tinha munição/ suficiente para dar cabo de Deus."

Em "Agricultura do Concreto", Caleb Femi conta como se faz para arar o seu território: "juntamos revólveres/ e facas/ e pedras/ e chamamos eles de ferramentas/ para trabalhar a terra."

É um mundo de ameaças, antros de crack e execuções simuladas. "Dois segundos antes do tiro", o menino a ser executado "inspira fundo um bocado de ar/ na esperança de que o ar o mate antes do que o revólver".

Em "O Negro de Schrödinger", Caleb Femi faz referência ao conhecido paradoxo da física quântica, em que se imagina um gato, preso dentro de uma caixa, sobre o qual não se pode dizer se está vivo ou morto. Nessa teoria, o "gato de Schrödinger" deve ser descrito como "vivo-morto", ou "vivorto", ou "morvivo".

Pois bem. O poeta descreve então outra caixa —a de um aparelho de TV— em que são transmitidas notícias sobre um episódio de saque e vandalismo na cidade. Aparecem imagens de um ônibus pegando fogo, de garotos usando agasalho com capuz, e de um céu "que se recusa a trazer chuva e se recusa a mostrar o sol", uma vez que "resolveu cuidar da própria vida".

Aí a televisão mostra o rosto de um jovem negro, Mark Duggan, assassinado pela polícia no conflito. "Era uma foto de mim mesmo, ainda que eu não estivesse morto", diz o poeta, e continua: "é assim que é ser negro por aqui: tipo estar morto e vivo ao mesmo tempo".

E o capuz de um agasalho parece, para ele, o botão de uma flor que vai desabrochar, em garotos "bonitos como o medo", dormindo não mais num prédio de concreto, mas em outro lugar, "verde, eternamente verde". Longa vida a Caleb Femi.

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