Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Lula fala a coisa certa sobre aborto, e cai o mundo

Verdade sobre a questão é omitida, até entre mulheres, por medo de perder votos e eleger Bolsonaro

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O Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão. Do jeito que a coisa vai, há de ser o último a permitir que mulheres façam aborto.

Países com fortíssima identidade católica, como Itália (1978) e Espanha (1985), seguidos mais tarde por Portugal (2007) e Irlanda (2018), liberaram a interrupção voluntária da gravidez.

O país do papa, o país da Santa Inquisição, o país da Virgem de Fátima, e a ilha em que católicos e protestantes ou se separaram ou entraram em guerra civil tiraram da legislação corrente e dos serviços gratuitos de saúde essa imposição mística sobre o corpo da mulher.

Ilustração que representa, sobre um fundo vermelho contando listras amarelas, brancas e pretas, a foto de uma mão em preto e branco segurando um prego em formato de cruz espetando um balão de diálogo
Ilustração publicada em 12 de abril - André Stefanini

Aqui, o problema parece ser que o declínio do catolicismo abriu uma oportunidade, entre os anos 1960 e 1980. Mas isso se perdeu com avanço do obscurantismo das igrejas evangélicas radicais.

É provável que, enquanto pastores se esganiçam na televisão para arrancar dinheiro da classe pobre, muita seguidora dessas igrejas já tenha procurado fazer aborto clandestino.

A raiz católica da nossa cultura sem dúvida admite esse tipo de duplicidade. Na esfera pública, aceitam-se as proibições do Antigo Testamento; na vida real, o bom senso sugere que não faz sentido manter-se virgem até o casamento, ou ter cinco filhos sem condição nenhuma de lhes dar alimento, moradia e educação.

Consolida-se então um verdadeiro tabu, um ai-ai-ai proibindo até mesmo que algum político toque no assunto com clareza e honestidade.

Talvez até meio sem querer, Lula tinha dado um pequeno passo adiante no debate. Declarou em entrevista que já era tempo de as pessoas pararem de ter vergonha, e, exercendo seu direito, dizer simplesmente: "eu não quero ter filho, vou cuidar de não ter filho".

A frase, para mim, era óbvia, sensata, humana.

Mas aí caiu o mundo.

Opa, opa, é perigoso. Xi… estamos dando munição para a direita… Em época eleitoral esse assunto, hum, hum, upa, é divisivo

Para minha tristeza e meu espanto, vi que mesmo mulheres, jornalistas, modernas, jovens, avançadas, resolveram criticar a fala de Lula.

A vontade de que Lula vença as eleições parece tão forte em alguns setores, que se está disposto a aceitar qualquer sacrifício.

Joga-se fora a bandeira do aborto (Lula precisa se eleger). Comemoramos a aliança com Alckmin (ok, ele não é tão ruim assim). Passamos os dias em reuniões na Faria Lima (Lula precisa se eleger). Que tal defender a pena de morte (pode não ser tão ruim assim)? E por que não prometer uns ministérios para pecuaristas e donos de mineradora? (Lula precisa se eleger).

Concordo que, quando a democracia está ameaçada, cumpre ampliar ao máximo o campo das alianças políticas. Mas uma das coisas que mais enfraqueceram a democracia, nas últimas décadas, foi o sistema de não se dizer nada de concreto numa campanha eleitoral, de fugir a qualquer debate honesto das questões, e passar anos de governo enrolando, adiando e renegando as medidas que eleitores e eleitos sabem necessárias.

A eleição de Bolsonaro justamente mostrou a mudança nesse sistema.

Tudo o que ele dizia era divisivo, escandaloso, absurdo. Em outros tempos, uma só de suas frases sobre homossexuais, mulheres, negros ou torturados teria destruído sua candidatura.

Bolsonaro ganhou votos. E, com isso, um mundo de loucura, de preconceito, de brutalidade acabou se legitimando, pela aura do cargo oficial, do séquito fardado, dos cabos evangélicos. "Um outro mundo é possível": a antiga frase de esquerda se realizou, com o pesadelo triunfante de um fascista insuflando a metade fascista da população.

Enquanto isso, a esquerda morre de medo. Tudo, menos "provocar" o eleitorado de direita. Fazer qualquer coisa pela eleição já é errado.

Recomendar que um candidato deixe de dizer isso ou aquilo, para que não perca votos, é função de assessores políticos. Em geral, são de direita também.

Mas é difícil acreditar que pessoas independentes, intelectuais, mulheres, reajam com o raciocínio do marketing mais imediatista no caso da fala de Lula. Eis um exemplo daquilo que Julien Benda (1867-1957) chamava de "traição dos intelectuais" —é deixar de dizer o que se acha certo, em função de cálculos ditados pela razão de Estado.

Volta-se rapidinho ao lugar-comum: aborto é uma questão de saúde pública et cetera. Puro disfarce para não dizer o essencial: é um direito da mulher. Mas a conversa da "saúde pública", que só se prolonga como cortina de fumaça, é tema para outro artigo.

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