Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu Filmes

'Sinfonia de um Homem Comum' mostra luta contra imperialismo dos EUA

Documentário traça o perfil do diplomata brasileiro José Maurício Bustani, que enfrentou a farsa da Guerra do Iraque

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Vladimir Putin continua cometendo seus crimes de guerra contra a Ucrânia, numa ação imperialista e arbitrária.

Como já escrevi aqui, não sou daqueles que encontram, nesse caso, motivos para criticar a União Europeia, a Otan ou "o Ocidente". O povo ucraniano tem o direito de querer dar as costas à Rússia, que o oprimiu a vida toda, e Putin não passa de um invasor brutal.

Mas o assunto de hoje é outro —mais um caso, na verdade, de imperialismo, violência e morticínio. Foi há 20 anos mais ou menos, e suas dimensões morais, na época, eram tão evidentes quanto as de agora. Só que os vilões, os cínicos, eram americanos e britânicos. Chamavam-se George W. Bush, Donald Rumsfeld, Colin Powell e Tony Blair.

Estavam todos de acordo em inventar pretextos para invadir o Iraque. A teoria era que o ditador Saddam Hussein dispunha de armas químicas, ou "armas de destruição de massa". Já na época a coisa surgia como completa invencionice.

Ilustração que representa um teclado de piano, mas cujas teclas estão coloridas de vermelho e branco, e sobre as quais há uma faixa azul
Ilustração publicada em 5 de abril - André Stefanini

Depois de matarem centenas de milhares de iraquianos, sem contar os próprios soldados mortos ou que voltaram traumatizados, os líderes da coalizão ocidental se viram confrontados pelos fatos. Nenhuma arma química foi encontrada no Iraque. As supostas "provas de inteligência" de que dispunham eram peça de ficção.

Há excelentes filmes sobre isso, como "Vice", de Adam McKay, mostrando o papel facinoroso de Dick Cheney, vice-presidente americano, no desencadeamento da guerra. Ou "O Conhecido Desconhecido", de Errol Morris, com o terrivelmente cínico Donald Rumsfeld. Sobre o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto em Bagdá em 2003, Greg Barker dirigiu dois filmes, um documentário e outro ficcionalizado, ambos disponíveis na Netflix.

Lançado no festival É Tudo Verdade, surge "Sinfonia de Homem Comum", de José Joffily. O filme traça o perfil de outro diplomata brasileiro que, nos meses que antecederam a guerra, tornou-se mundialmente conhecido pela coragem e independência.

José Maurício Bustani foi o primeiro diretor-geral da Organização para a Prevenção das Armas Químicas, entidade internacional criada em 1997, com sede em Haia, na Holanda. Tinha sido reeleito para mais um mandato de quatro anos quando Bush decidiu que havia armas químicas no Iraque —e que a resposta para isso era bombardeio.

O embaixador aposentado José Maurício Bustani, que foi diretor geral da Organização para a Proscrição das Armas Químicas - Lula Marques - 26.mar.02/Folhapress

O esforço de Bustani era outro: como com qualquer outro país, tratava-se de atrair o Iraque para a organização e submetê-lo às inspeções que provariam (ou não) a existência de tais armas em seu território.

A pressão americana foi total. Na linha de ataque estava o americano John Bolton, que depois teria seus esforços de direitista radical recompensados por Donald Trump.

O filme de José Joffily mostra Bustani 20 anos depois, em seu apartamento no Rio de Janeiro, dedicando se à música clássica em seu piano de cauda. Calmíssimo, ele conta a visita de Bolton a seu gabinete.

O americano, sem diplomacia nenhuma, diz que Bustani tinha 24 horas para sair da organização. Acrescenta que conhecia o nome e o endereço dos filhos de Bustani —eles viviam em Nova York e Londres. Bustani não se abalou com a ameaça.

O computador de Bustani foi hackeado. Numa parede de seu escritório, puseram dispositivos de escuta. O chefe de segurança da organização, que era americano também, sumiu no dia em que descobriram a espionagem.

Países simpáticos à presença do brasileiro acabaram votando por demiti-lo. A Índia mudou de voto do dia para noite, depois de os Estados Unidos lhe prometerem o fornecimento de aviões de guerra.

O governo brasileiro não se mexeu. Celso Lafer, o ministro das Relações Exteriores, estava mais ocupado em tirar os sapatos para se submeter às inspeções de segurança num aeroporto americano.

Entrevistado no documentário, o então presidente Fernando Henrique Cardoso invoca a ideia da "utopia viável". Sim, sim, valores são importantes, mas… não podem ser "abstratos". Têm que "fazer sentido".

Mandou a utopia para o espaço e se conformou com o viável —que é deixar o barco correr.

Mais simpático foi o governo Lula, que depois de tudo nomeou Bustani para ser embaixador em Londres, no mínimo obtendo a satisfação de esfregar na cara de Tony Blair um nome àquela altura célebre mundialmente pela resistência à guerra.

Feito com tranquilidade, quase que numa voluntária ausência de ênfase, "Sinfonia de um Homem Comum" é desses filmes que fazem o sangue ferver e, como seu protagonista, vêm mostrar que, na hora do balanço histórico, é sempre melhor ter sido utópico do que ter sido cúmplice.

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