Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Poemas de 'Trabalhar Cansa', de Cesare Pavese, vencem leitores aos poucos

Autor italiano ganha duas traduções de sua obra, que traz para a poesia seu estilo 'direto', antilírico, realista e regional

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O italiano Cesare Pavese (1908-1950) não gostava de muita enrolação. Você vai ler um de seus poemas, e encontra coisas assim: "Na prisão/ há operários calados e alguém já morreu./ Nas estradas cobriram as marcas de sangue".

Ou então: "O meu primo é um gigante vestido de branco,/ que se move pacato, bronzeado no rosto,/taciturno. Calar é a nossa virtude".

Que tal isto? "Na cidade há quem coma galinhas. Nas ruas/ não se veem galinhas. Mas vê-se o velhote [...]/ que, sentado na esquina, contempla os passantes/ e, quem quer, lhe arremessa um trocado."

colagem com parte do rosto de um jovem de olhos fechados sob uma planície rochosa com fundo azul. Elementos gráficos e recortes de fotos com flores azuis e beges compõe em volta do elemento principal
Ilustração publicada em 14 de junho - André Stefanini

É tudo muito "fatual". Parece prosa, e em 1943, quando ele publicou seu primeiro livro de poemas, "Trabalhar Cansa", os críticos estranharam bastante. Na época, a literatura italiana alcançava grandes alturas com a chamada escola "hermética", a de Montale e Quasimodo, adepta da brevidade e do mistério da "poesia pura".

Poesia "pura", a de Pavese não era; "tampouco é certo que se trate sequer de poesia", disse o consagrado crítico Gianfranco Contini. Tiro a referência do prefácio escrito por Mauricio Santana Dias para sua tradução de "Trabalhar Cansa", republicada há pouco tempo pela Companhia das Letras.

Sai agora outra tradução integral, por Andréia Rinconi (editora Colenda). O livro da Companhia das Letras tem a vantagem de trazer o original italiano, mas vale a pena estar com as duas obras à mão para resolver algumas dúvidas de leitura.

Em "Ulisses", por exemplo, o autor retorna ao tema do adolescente que resolve fugir de casa, ou pelo menos andar por aí a esmo e só voltar de noite.

"O rapaz começou a crescer e descobre/cada dia algo novo e não fala a ninguém", traduz Santana Dias. E continua: "O rapaz tem um jeito de ir-se de casa/ que, quem fica, se sente jogado de lado". Na tradução de Rinconi, lê-se: "Ele tem seus modos de ir para a rua/ que, quem fica, percebe que não faz mais nada".

Em italiano, está "Il ragazzo ha un suo modo di uscire di casa/ che, chi resta, s'accorge di non farci più nulla". Tento entender: o rapaz tem um jeito de sair de casa que, quando volta, todos já sabem que não há nada mais o que fazer com ele. Seria isso?

Bem ou mal, o que existe aqui é a ideia de uma juventude, ou mais precisamente de um começo de adolescência, em que a pessoa já não estuda nem trabalha; a modorra das cidades italianas na década de 1930 antecipava, quem sabe, a geração "nem-nem" dos dias de hoje.

Com toda a sua surpreendente obviedade, o título "Trabalhar Cansa" é na verdade ambíguo. Embora Pavese fale de agricultores, pedreiros e prostitutas, seu livro está longe de ser um elogio ao operariado no estilo do realismo socialista.

A frase "trabalhar cansa" também pode ser empregada por um adolescente, talvez poeta, que justamente não quer ou não começou a trabalhar. A ideia não é de "engajamento político" (embora Pavese tenha ficado preso durante um período, por motivo fútil, sob o regime fascista). É mais um "desengajamento", na verdade.

Sem emprego, sem estudo, sem namorada, o "eu" desses poemas não se queixa. Anula-se diante de uma objetividade que, por isso mesmo, parece "prosaica".

Na primeira parte do livro, os poemas se sucedem como se fossem fragmentos de um conto —um assassinato, uma mulher que vai para a cidade e vira prostituta, alguém que rouba uvas na vizinhança. Mais conhecido como romancista, Pavese traduziu muitos autores modernos americanos, como John dos Passos e Sinclair Lewis. A importância de alcançar um estilo "direto", antilírico, realista e regional está presente na sua obra de ficção, já em parte publicada no Brasil.

Mas como fica a poesia? Ainda que o leitor não tropece em metáforas a cada verso, os textos de "Trabalhar Cansa" conquistam-no aos poucos, ainda mais com as duas traduções agora disponíveis em português. Sua poesia dá trabalho, mas vence, digamos, "pelo cansaço".

Pode-se ver, por exemplo, que a situação da pré-adolescência encontra uma imagem poética quando Pavese descreve "objetivamente" uma paisagem: "as plantas descansam/ e já estão mais escuras [...] Até a água do rio engoliu as ribeiras/ e as macera ao fundo, ao céu [...] Vem até uma aragem que não move as nuvens."

É um tempo de espera e de silêncio, de pobreza e, quem sabe, de esperança.

"Nas estradas cobriram as marcas de sangue", diz ele. Não para sempre.

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