Tentar prever alguma coisa no Brasil é errar na certa. Converso com amigos: alguns acham que a chance de golpe é muito grande, outros não acreditam, e há quem mude de opinião conforme o dia.
Um detalhe, nesse quadro de incertezas. As pessoas não falam na probabilidade de "UM golpe". O mais comum é dizer "O golpe", com artigo definido. Bolsonaro vai dar O golpe, Bolsonaro não vai dar O golpe.
No mínimo, isso é sinal de que a coisa está anunciadíssima; se vier, todo mundo vai dizer que "já sabia", "estava na cara". Junto com essa sensação de falta de surpresa, uma boa dose de conformismo pode ser percebida. "É isso aí... Fazer o quê? Agora, fica difícil."
Bolsonaro convidou os chefes de Estado de nações de língua portuguesa para o desfile militar de 7 de Setembro. Menos mal; um tumulto com outros presidentes no palanque fica mais difícil.
Ah, mas até lá, até lá... Minha Cassandra das insônias vai maquinando outras hipóteses. Se o clima piora para valer neste mês de agosto, o desfile pode virar mais legitimação de uma "nova ordem" do que ocasião para baderna. Não sei.
E, como venho dizendo, tudo pode ser gradual —o próprio nome de "golpe" muitas vezes se submete a distorções semânticas.
Na falta de maior vandalismo dos bolsonaristas, há sempre a chance de um acordo: aceita-se a urna eletrônica, mas se cozinham em água morna os processos criminais do ex-presidente e seus acólitos.
Com desordens de parte da fascistada, o presidente e os militares podem se fazer de "moderadores" —ou surfar na onda. Não é difícil, acho, desestabilizar um país.
Mas é por aí que se podem entender as divergências de análise entre os que creem em golpe e os que descartam a hipótese.
No fundo, acho que há dois modelos em jogo. Num deles, a política depende muito das relações entre as classes sociais. No outro, essa ligação é muito mais frágil.
Ouço os raciocínios de quem acredita pouco no golpe. Há razões para otimismo.
Os banqueiros são contra; assinam até manifesto pela democracia. O Biden não deixa. E os acordos de Lula com a indústria e os bancos, as chamadas "classes produtoras", estão mais sólidos do que nunca.
No clube das classes dominantes, só o agronegócio e a mineração, e mesmo assim divididos, gostariam de manter um sistema de incentivo ao desmatamento e ao morticínio. Se se contentarem apenas com a vista grossa, Lula é conversável.
O raciocínio prossegue: o grosso da população já não sustenta Bolsonaro. Boa parte da mídia se opõe a um golpe clássico.
Essa é, basicamente, a perspectiva de uma "análise de classes". O mapa da sociedade brasileira, da sua estrutura básica, mostra poucos pontos de apoio para uma aventura troglodita.
Mas há outra maneira de ver o cenário político. Resumindo, trata-se de valorizar mais o papel do acaso, do ilógico, do acidente.
Em 1964, tudo estava pronto para o golpe; as classes dominantes e os Estados Unidos já tinham preparado a derrubada de um presidente democraticamente eleito.
Mesmo assim, as coisas poderiam ter acontecido de forma diferente. Um general maluco decidiu não esperar mais e saiu com seus tanques pela estrada; outro general hesitou até o último momento.
A "estrutura" econômica e geopolítica nos anos anteriores a 1914 indicava a ocorrência de um conflito; mas a Primeira Guerra só aconteceu porque muitas chances de evitá-la foram perdidas incrivelmente. Os "mercados", aliás, entraram em pânico naquele verão.
O "desejo", a "iniciativa" de uma classe social inteira, penso eu, são em certa medida forças de expressão; explicam as coisas depois de eles já terem acontecido.
Veja-se o manifesto dos banqueiros, industriais e representantes da sociedade civil. Querem democracia. Ok. Mas suponha que Bolsonaro vá em frente. Diante de um golpe consumado, é mais provável que se adaptem; muito difícil que, hum, resolvam "resistir".
Engraçado que se diga "Ah, os militares não querem o golpe". Não há setor mais golpista na história brasileira. Vai me dizer que setores mais "moderados" vão impedir o que os mais trogloditas inventarem? Unidade e coesão, amigos. E Bolsonaro acima de tudo. Qualquer problema, resolvam com o Paulo Guedes.
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