Marcelo Gleiser

Professor de física e astronomia na Universidade Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.

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Marcelo Gleiser

Como detectar uma partícula fantasma

Detectores espalhados pelo mundo estão em busca de neutrinos

Como a Raposa disse ao Pequeno Príncipe na fábula de Saint Exupéry, o essencial é invisível aos olhos. Se a Raposa não estivesse falando de amor, podia estar se referindo às partículas elementares da matéria, os tijolos que compõem tudo o que existe.

A poesia aqui está em compreender que o mundo é feito de pedaços de matéria minúsculos que carregam, neles, a história da própria criação. Você e suas células são feitos de restos de estrelas que morreram há bilhões de anos, antes de o sol e os planetas terem nascido. Se você acha que quem tem 50 anos já é velho, melhor pensar de novo!

Cientistas dedicam suas vidas para desvendar a história desses pedaços minúsculos de matéria, na esperança de aprender algo sobre os mistérios do universo e os vários fenômenos que ocorrem nele, desde estrelas que explodem até buracos negros e a origem da própria vida.

De todas as partículas conhecidas, nenhuma é mais estranha do que o neutrino. O nome foi sugerido pelo físico italiano Enrico Fermi, que via neutrinos como nêutrons pequenos: em italiano, piccolo nêutron acabou virando neutrino.

Neutrinos aparecem em três tipos, ligados às suas partículas irmãs: o elétron tem seu elétron-neutrino; o múon tem o seu múon-neutrino, e o tau tem o seu tau-neutrino. Múons e taus são, essencialmente, primos mais pesados do elétron. Como o nome indica, neutrinos não têm carga elétrica e têm uma massa muito pequena. Não sabemos os valores de suas massas individuais, mas sabemos que a soma das três é minúscula, em torno de 30 milhões de vezes menor do que a de um único elétron.

Sabemos também que os neutrinos interagem apenas muito sutilmente com outras partículas, o que torna a sua detecção extremamente difícil. Para serem detectados, cientistas usam receptáculos gigantescos com algum tipo de matéria dentro (em geral, água) na esperança que, de vez em quando, um neutrino atinja uma molécula do líquido e crie um sinal que possa ser observado.

Os melhores detectores de neutrinos usam água líquida ou gelo como alvos. A ideia é que, se um neutrino que vem do espaço atingir uma molécula de água, a colisão criará um lampejo de radiação (conhecida como radiação Cherenkov (veja neste vídeo), análogo as ondas de choque que são criadas quando um avião ultrapassa a velocidade do som. No caso, quando uma partícula com carga elétrica viaja mais rápido do que a velocidade da luz num meio material, algo de semelhante ocorre e radiação é emitida. (Note que, num meio material, a velocidade da luz é menor do que no espaço vazio ou vácuo. Portanto, não existe violação do princípio da relatividade, que diz que nada pode viajar mais rápido do que a luz no vácuo.)

O detector Super-Kamiokande, no Japão é um cilindro enorme de aço blindado de 42 por 40 metros, contendo 50 mil toneladas de água ultra pura. Quando um neutrino atinge uma molécula de água no tanque, um flash de radiação Cherenkov é detectado por um dos 110 mil foto-sensores alinhados ao longo das paredes do detector. Para evitar a interferência de outras fontes de radiação, como os raios cósmicos (partículas originadas no espaço que chovem dos céus continuamente), o detector fica enterrado numa mina abandonada a mais de um quilômetro de profundidade. Eu tive a oportunidade de visitar o detector durante a filmagem de uma das minhas séries para o Fantástico e me lembro bem da experiência, que pareceu uma viagem a um filme de ficção científica. Neste aplicativo você pode viajar virtualmente pelo detector em 3D.

Um outro tipo de detector de neutrinos é o IceCube, localizado no Polo Sul. Como o Super-Kamiokande, este detector também está enterrado abaixo do solo, no caso a cerca de 2.500 metros de profundidade na crosta gelada. O alvo, aqui, são as moléculas de gelo. Usando um outro método de detecção, o IceCube também mapeia a radiação Cherenkov que é liberada quando um neutrino atinge uma molécula de água no subsolo.

Como neutrinos viajam praticamente livres através do espaço, operam de modo semelhante à luz que astrônomos detectam em seus telescópios. Por isso, detectores de neutrinos são muitas vezes chamados de telescópios de neutrinos. As partículas-fantasma são produzidas não só no coração do sol e de todas as estrelas que brilham, mas também em eventos mais dramáticos, como as explosões de supernova que marcam o fim da vida de uma estrela,  em colisões entre estrelas ou entre buracos negros ou até no próprio Big Bang.

O detector de neutrinos Super-Kamiokande, no Japão. Os neutrinos são partículas-fantasmas que bombardeiam a Terra o tempo todo.
O detector de neutrinos Super-Kamiokande, no Japão. Os neutrinos são partículas-fantasmas que bombardeiam a Terra o tempo todo. - ICRR-Universidade de Tóquio

Cada neutrino detectado conta a história de um desses eventos, revelando alguns de seus segredos. Esses detectores deram origem a um novo tipo de astronomia de neutrinos, que revela os processos físicos —que sempre envolvem energias nucleares—  capazes de criar essas partículas.

Pode parecer estranho chamar esses detectores subterrâneos de telescópios, mas é exatamente o que são. Neutrinos criados em supernovas foram já observados em muitas ocasiões, como, também, o fato de que os três tipos de neutrinos podem se transformar um no outro durante o trajeto da fonte ao detector, um fenômeno conhecido como oscilação de neutrinos.

Um dos objetivos mais importantes desses detectores (e de outros, como o detector Pierre Auger) é encontrar os neutrinos mais energéticos que existem no universo, com energias dez vezes maiores do que as atingidas no Grande Colisor de Hádrons no Cern, o laboratório de partículas na Suíça onde o bóson de Higgs foi encontrado em 2012.

Estudar processos físicos nesse nível energético altíssimo promete abrir uma nova janela para nossa compreensão das partículas de matéria e suas interações. Dada a natureza um tanto bizarra dessas partículas-fantasma, podemos esperar algumas surpresas, como acontece ciência abre uma nova janela a mais um dos tantos mundos invisíveis que nos cercam.

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