Marcelo Gleiser

Professor de física e astronomia na Universidade Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.

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Marcelo Gleiser

A beleza oculta da imperfeição

Como ocorreu nas artes, a física precisa reconsiderar seus ideais de perfeição

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É hora de explorar uma nova estética da natureza. Nas últimas duas semanas, em conversa com a física alemã Sabine Hossenfelder, discuti aqui a crise que vem emergindo na física de ponta, em particular, na busca por uma teoria que unifique todas as leis da natureza, e a falta de dados, após décadas de experimentos, que justifique tal busca.

Esse é um momento curioso, onde as expectativas de como a natureza deve funcionar têm sido frustradas pelo silêncio persistente de instrumentos cada mais intrincados e sofisticados.

Flores em um jardim
Flores em um jardim - Heinz-Peter Bader/Reuters

A busca por uma unidade fundamental na natureza é compreensível —eu mesmo passei anos de minha carreira trabalhando nisso. Afinal, uma leitura possível da história da física é a de uma unificação cada vez maior do que aparentemente são fenômenos naturais desconectados.

Os gregos, nos primórdios da filosofia ocidental, formularam a questão essencial de seu pensamento em termos que são ainda muito pertinentes: “Do que é feito o mundo?”

Suas respostas iniciais foram já uma tentativa de unificação. Para Tales, tudo era feito de água; para Anaximandro, de uma substância primordial indefinida de onde tudo vinha e para onde tudo voltava; para Anaxímenes, de ar; para Heráclito, de fogo. Para Aristóteles, que irá influenciar o pensamento europeu por 2.000 anos, todos os objetos celestes são compostos de uma quinta substância, o éter, perfeito e imutável.

No século 17, Newton unificou os movimentos na Terra e nos céus com sua teoria da gravitação universal: a maçã cai e a lua viaja em torno da Terra devido à mesma força entre duas ou mais massas. Essa descoberta abriu o cosmos para a mente humana, que agora podia estender seu alcance aos confins do espaço. A escrita da natureza é matemática, os movimentos seguem lei precisas, expressas através de equações.

Na teoria de Newton, a geometria tem um papel básico, sendo o esqueleto do dialeto cósmico. A chave que abre as portas para os segredos da criação é a simetria. Escreveu sua obra-prima "Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural" como um tratado geométrico. A física, como descrição da natureza, tornou-se no estudo dos movimentos dos vários objetos, dos átomos a planetas, seguindo leis da geometria.

O sucesso da revolução newtoniana deu o ímpeto intelectual ao Iluminismo do século 18. As ideias de Newton foram generalizadas e aplicadas ao estudo da sociedade e suas leis. Através da formulação matemática da realidade natural e social, o homem buscava por uma ordem, por um controle da natureza, por algo permanente que elevasse nossas mentes imperfeitas à perfeição abstrata da mente divina.

A visão comum da ciência como sendo uma mera descrição da realidade material esconde algo de mais profundo, a ciência como veículo de transcendência. O homem em busca de uma intelectualidade purificada, semidivina.

É aqui que o problema começa.

Em torno de 400 a.C., Platão havia proposto que a essência da realidade está no mundo das ideias e não na realidade que percebemos com nossos sentidos. Para ele, este mundo das ideias era essencialmente matemático.

A ciência desenvolvida por Newton e seus sucessores, herdeira dessa tradição filosófica, busca pelas leis fundamentais da natureza, o mapa da realidade. O físico teórico tornou-se um tradutor, cujo objetivo é revelar, aos poucos, as várias partes desse mapa, como peças de um quebra-cabeças.

A busca por uma unidade fundamental na natureza deu um enorme passo no século 19 com o desenvolvimento do eletromagnetismo, onde os campos elétrico e magnético são vistos como sendo manifestações de um único campo, que se propaga no espaço na velocidade da luz.

Unificação tornou-se sinônimo de simplicidade, e simplicidade de beleza, especialmente quando expressa matematicamente através de alguma simetria. Os gregos consideravam o círculo —a mais perfeita das formas— como o tijolo essencial da realidade. Agora este conceito de perfeição matemática foi generalizada como uma estética da natureza: a beleza como critério de verdade.

Durante o século 20, essa estratégia atingiu o seu clímax com a teoria de supercordas, desenvolvida inicialmente em meados da década de 1980. Para unificar as quatro forças da natureza (gravidade, eletromagnetismo e as forças nucleares forte e fraca) e as partículas conhecidas de matéria, a teoria necessita de seis dimensões extras do espaço e mais um tipo novo de simetria, a “supersimetria”. Ambas propriedades geram efeitos que experimentos podem, em princípio, detectar, essencialmente como novas partículas da natureza.

O sonho, portanto, estava forjado. Bastava encontrar essas novas partículas, conectá-las aos modelos vigentes —resolvendo alguns de seus problemas—, e provar que, de fato, a estética da perfeição como critério de verdade representa a essência da natureza física.

Infelizmente, após décadas de busca, as novas partículas não foram encontradas.

E agora? Os que continuam defendendo esse modelo da Natureza encolhem os ombros: “E daí? Talvez as partículas sejam pesadas demais para os detectores que temos no momento. Vamos continuar procurando que, eventualmente, vamos encontrá-las”. Talvez. Ou, talvez, elas não existam mesmo. Essa é uma escolha difícil, que merece outro artigo.

Existe, no entanto, uma alternativa. Talvez, a estética baseada na “beleza como critério de verdade” esteja errada. Não há dúvida de que ela serviu muito bem à física, e que inspirou inúmeras descobertas espetaculares. O erro, o perigo, é elevar esse sucesso à categoria de princípio da natureza.

Como argumentei em meu livro "Criação Imperfeita", essa atitude cria uma espécie de cegueira intelectual, não muito diferente do fervor religioso. “Existe apenas um caminho para a verdade, e é o que escolhi. Qualquer alternativa está errada.”

E se virarmos isso de cabeça para baixo e propusermos que a imperfeição, e não a perfeição, é o portal para os segredos da Natureza?

Pois a história da física pode também ser contada como uma história de imperfeições e assimetrias se intrometendo nos sonhos de teorias perfeitas. Como explorei em "Criação Imperfeita", muitos dos chamados sucessos das várias unificações através da história ocorrem apenas em circunstâncias especiais. As equações de Maxwell do eletromagnetismo apenas revelam a belíssima simetria entre os campos elétrico e magnético na ausência de fontes (por exemplo, cargas elétricas e imãs). Como este, existem vários outros exemplos, que vão da física à biologia.

Mais corretamente, devemos dizer que a natureza funciona não por ser perfeita, mas por ser tanto perfeita quanto imperfeita. A assimetria traz o desequilíbrio, que é a raiz de todas as transformações. Em vez de coroar a perfeição como a essência da realidade, o mais correto é usar uma complementaridade das duas na descrição de como a natureza funciona.

Como nas artes, que há mais de um século romperam com os ideais de perfeição do passado, a física precisa reconsiderar seu caminho atual. Uma estética da natureza baseada na imperfeição é tão essencial quanto uma baseada na perfeição. Precisamos de ambas.

Afinal, somos produto de inúmeras imperfeições e perfeições, de simetrias e assimetrias, todas elas parte da essência do cosmos. Somos capazes de desvendar algumas delas, e é este o objetivo central da ciência.

Por outro lado, devemos, também, aceitar que somos parcialmente cegos para muito do que ocorre no mundo. Precisamos de humildade para aceitar que a essência da realidade permanece incognoscível. A ciência nos conta apenas parte da história, fornecendo um mapa incompleto do mundo.

Não somos nós que decidimos como a natureza funciona. A última palavra é sempre dela, sua essência revelada na tensão entre o perfeito e o imperfeito.

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