Marcelo Gleiser

Professor de física e astronomia na Universidade Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.

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Marcelo Gleiser

Mapeando a realidade: em busca de uma perfeição inatingível

A ciência nunca poderá chegar a um estado final de conhecimento considerado completo

 Como determinar se um mapa é bom? O escritor argentino Jorge Luis Borges, em uma de suas brilhantes alegorias, resumiu a situação em um conto de apenas um parágrafo, "Sobre o Rigor na Ciência":

"(…) Naquele império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do Império, uma província inteira. Com o tempo, estes mapas desmedidos não bastaram, e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos dedicadas ao estudo da cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado mapa era inútil e não sem impiedade entregaram-no às inclemências do Sol e dos invernos. Nos desertos do oeste perduram despedaçadas ruínas do mapa habitadas por animais e por mendigos; em todo o país não há outra relíquia das disciplinas geográficas."
 
O único mapa perfeito é o que reproduz em todos os detalhes o que está representando, o território. Daí o paradoxo: um mapa que é tão grande quanto o território que representa não tem nenhum valor. Um mapa perfeito é inútil.

Note o título do conto de Borges, "Sobre o Rigor na Ciência". Podemos interpretar a ciência como um mapa, como uma representação de como vemos a natureza (o território). Neste caso, Borges está criticando cientistas que acreditam, inocentemente, que o que fazem é produzir um mapa perfeito da realidade.

A analogia é bem apropriada, dado que captura tanto os objetivos quanto as frustrações da pesquisa científica: queremos aprender o máximo possível sobre o mundo e traduzir o que aprendemos em um mapa que outros podem ler. Quanto mais aprendemos, mais detalhado fica o mapa. Entretanto, como o filósofo francês Bernard Le Bovier de Fontenelle já sabia em 1686, podemos ver apenas uma fração do que existe. Por consequência, qualquer mapa que produzimos é necessariamente incompleto.

Vemos, aqui, uma tensão entre nossa curiosidade de sempre querer saber mais e nossa inevitável miopia, que nos impede de ver melhor. Esta tensão não é má; é ela que inspira nossa criatividade e inventividade. Nossos instrumentos científicos são ferramentas de exploração, que usamos para ampliar nossa visão do mundo, o que chamo de amplificadores do real. Da mesma forma que mapas evoluem quando aprendemos mais sobre a geografia terrestre, nossa compreensão científica da natureza evolui quando podemos explorá-la mais profundamente com nossos instrumentos.

O perigo, como Borges nos alerta em seu conto, é que nossa ambição pode ir contra nossos objetivos. Sem uma reflexão maior, a necessidade de produzir mapas cada vez mais precisos da realidade, com a intenção de chegar ao mapa final, a descrição perfeita do território, é uma forma de cegueira. Borges, que ficou cego devido a cataratas intratáveis na época, sabia disso melhor do que a maioria. Mesmo com visão plena, muito do mundo permanece oculto.

Pela sua própria natureza, a ciência, em qualquer de suas disciplinas, nunca poderá chegar a um estado final de conhecimento considerado completo. Da mesma forma que, na prática, é impossível catalogar todos as espécies de insetos e de fungos no planeta, nunca podemos ter certeza de que nossa descrição das interações entre as partículas subatômicas de matéria é, de fato, final.

No caso dos insetos e dos fungos, não só é impossível localizar todos eles na vastidão da superfície e subsolo terrestre como devemos considerar que, durante o tempo que precisamos para levantar os dados, algumas espécies vão desaparecer, enquanto outras sofrerão mutações e consequentes transformações. O projeto com esse tipo de objetivo é elusivo, fato que deveria tanto inspirar e motivar mais estudos quanto despertar uma boa dose de humildade.

No caso das partículas elementares, existe sempre a possibilidade de que alguma escape aos nossos detectores e algoritmos de busca. Nunca podemos ter certeza de que a rede que estamos usando é fina o suficiente para capturar todas as partículas pela simples razão que nunca poderemos ter certeza de que sabemos tudo o que existe para ser capturado!

Um mapa serve um propósito preciso: guiar a pessoa do ponto A ao ponto B. Um mapa eficiente é aquele que faz isso deixando de lado todos os detalhes irrelevantes. Essa é a função dos modelos matemáticos que usamos em ciência, representações dos aspectos essenciais da realidade que queremos estudar que deixam de fora o que não é necessário. Existe economia na simplicidade.

Pensando na ciência como um mapa e na natureza como o território, Borges nos ensina algo precioso. Devemos nos orgulhar dos mapas que fazemos do mundo, tentando sempre melhorá-los. Porém, devemos nos lembrar que todo mapa é limitado, fornecendo informação incompleta do território que mapeia. Vemos o mundo com olhos estritamente humanos, e nossos mapas imperfeitos são um reflexo disso.

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