Marcelo Gleiser

Professor de física e astronomia na Universidade Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.

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Marcelo Gleiser

Tudo muda. Ou não? Da essência da natureza às amizades

Leis da natureza nunca se alteram, mas vemos um Universo em constante transformação

A disputa mais antiga em filosofia (ao menos no Ocidente) continua influenciando e confundindo cientistas e filósofos. Trata-se, em termos pomposos, da batalha entre o ser e o devir. Ou, em termos menos pomposos, se a essência da natureza se transforma (devir) ou é imutável (ser). 

Os que acham que esse tipo de debate é irrelevante e continuam marchando adiante sem se preocupar com essas coisas estão desperdiçando uma ótima chance de ver a vida de forma mais completa.

Em torno de 650 a.C., o filósofo grego Tales achava que o Universo era como um organismo, pulsando com vida, sempre em transformação. Para ele, nada ilustrava isso melhor do que a água, que considerava a essência de tudo. As pessoas nas cidades, cercadas por concreto, perdem essa visão do mundo como algo vivo, mas basta dar uma saída da rotina, visitar um parque, olhar ao redor e fica claro que o mundo vibra com vida e com transformação. 

Relâmpago no Rio de Janeiro, sob o Cristo Redentor
Leis da natureza não mudam, mas, olhando ao nosso redor, vemos um Universo em constante transformação - Xu Zijian/Xinhua

Quase na mesma época, Parmênides respondeu com a visão contrária: se você está atrás da verdade com "v" maiúsculo, não perca tempo com transformações, com coisas efêmeras. Vá atrás do que não se transforma, do que é eterno. Essa, sim, é a essência do Cosmo, o imutável. (Que ele chamou de Eon.) 

Platão gostou disso e sugeriu que o mundo que vemos com nossos sentidos não é o mundo real, mas uma representação distorcida da realidade. Apenas na imaginação encontramos o verdadeiro. E é lá que o belo existe. (Fica claro porque mais tarde o cristianismo endossará essas ideias, devidamente adaptadas à imutabilidade de Deus.) 

Traduzindo para a esfera social, e pedindo desculpas aos puristas, seria algo assim: o que é mais importante, ter muitas amizades que vão surgindo e desaparecendo, ou ter uma amizade significativa ao longo dos anos? 

Com o passar dos séculos e o desenvolvimento da ciência, o foco mudou para uma descrição quantitativa da natureza, validada através de observações e experimentos. Se a ciência é a busca pela verdade sobre o Cosmo, que verdade é essa? 

Tales e Parmênides continuam ecoando pelos corredores acadêmicos, mesmo que poucos cientistas prestem atenção para as raízes filosóficas de sua visão de mundo. (O que é uma pena e leva a muita confusão.) 

Dado que muitos fenômenos naturais exibem padrões de comportamento que se repetem (por exemplo, as órbitas planetárias ou os níveis de energia dos elétrons nos átomos), podemos descrevê-los através de modelos matemáticos que obedecem a certas regras. Essas regras, quando podem ser generalizadas na descrição de muitos fenômenos, recebem o nome de “leis da natureza”. (Veja minha coluna Mapeando a Realidade.) 

Uma lei famosa é a lei da conservação de energia, que diz que a quantidade total de energia em um processo natural é a mesma. Se energia é dissipada devido ao atrito, basta adicionar isso e o total é constante no tempo. 

A beleza dessas leis é que elas são válidas em qualquer parte do Universo. E nunca mudam. Elas são a versão moderna do ser de Parmênides. Alguns, incluindo o eminente filósofo de Harvard e político brasileiro Mangabeira Unger, tentaram desafiar essa imutabilidade das leis da natureza. Conhecemos pouco da física do Universo primordial, e é possível que violações tenham ocorrido no passado distante, mas nada de concreto foi encontrado até agora. 

Por outro lado, olhando ao nosso redor, o que vemos consistentemente é um Universo em transformação. Desde o nosso envelhecimento ao nascer de uma flor ou de uma estrela, das partículas subatômicas que emergem e desaparecem no vácuo quântico à própria expansão cósmica, tudo muda, sempre. Nada é, ou permanece, exatamente igual. A natureza está sempre em fluxo. 

E agora? Onde está a essência do Cosmo, nas imutáveis leis da física ou nas transformações materiais? 

Essa dicotomia me parece ser falsa. Podemos imaginar as leis da natureza como sendo o coreógrafo responsável pela dança da energia e da matéria. O espetáculo, a realidade física, precisa de ambos. A alternativa é um Cosmo sem leis, sem estruturas organizadas, incluindo a gente. Uma coreografia sem dançarinos faz tanto sentido quanto dançarinos sem uma coreografia. Um Universo sem leis faz tanto sentido quanto leis sem matéria. A dicotomia é tão falsa quanto a da mente e corpo: o que é uma mente sem um corpo ou um corpo sem uma mente? 

Está na hora de arquivar este debate entre Tales e Parmênides e suas muitas reencarnações e aceitar que precisamos de ambos para fazer sentido do mundo em que vivemos e entender melhor nosso lugar nele. Afinal, uma vida com aquela amizade antiga e única, e outras mais recentes e passageiras é uma vida mais vivida.

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