Marcelo Gleiser

Professor de física e astronomia na Universidade Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.

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Marcelo Gleiser

Queima do Museu Nacional é perda para o Brasil e para o mundo

Incêndio lembra a destruição da Biblioteca de Alexandria

“Todos que por aqui passem protejam esta laje, pois ela guarda um documento que revela a cultura de uma geração e um marco na história de um povo que soube construir o seu próprio futuro.”

“Era isto que vinha escrito no chão, em frente ao Museu Nacional,” disse Rui da Cruz Junior, arquivista e funcionário do Museu, destruído por incêndio devastador na noite do último domingo (2).

Lembro das visitas que fiz ao museu durante a infância, caminhando ao longo dos seus corredores com meus pais ou colegas de turma, o peito estufado de orgulho. Nele, encontrava-se a história recente e ancestral do Brasil, conservada e arquivada, dos dinossauros e mamíferos da megafauna aos primeiros nativos, do império à república.

Entrar no museu era entrar numa máquina do tempo. Dava quase para ouvir os murmúrios dos muitos homens e mulheres que moldaram a história política nacional. Agora, restam apenas cinzas e as poucas peças que escaparam, miraculosamente, das chamas.

O mais antigo museu das Américas, casa da quinta maior coleção de artefatos do mundo, com mais de 20 milhões de peças, 17 milhões delas no prédio destruído, sobrou pouco fora o esqueleto do palácio outrora resplandecente.

Foi lá que foi assinada a Declaração da Independência em 1822, pela imperatriz Leopoldina, esposa de Dom Pedro 1º, o príncipe real que se declarou imperador, rompendo o domínio da coroa portuguesa.

Ironicamente, o documento foi assinado exatamente no dia 2 de setembro, o mesmo dia em que, 196 anos mais tarde, o museu foi destruído. Foi lá que reinou Dom Pedro 2º, e onde foi assinada a primeira constituição do Brasil em 1824.

As perdas são devastadoras, e incluem o crânio de 12 mil anos de Luzia, um dos fósseis humanos mais antigos descobertos até hoje em solo nacional, que teve um papel central na revisão da história das primeiras populações nativas no território nacional. 

Murais greco-romanos de Pompeia, o sarcófago de Sha-Amun-Em-Su —um dos poucos no mundo ainda lacrados—, o fóssil do maior dinossauro brasileiro conhecido —com muitas das peças originais—, coleções de fósseis de animais e plantas extintas, duas bibliotecas contendo inúmeros livros raros, a coleção de espécies de Bertha Lutz —figura essencial na história científica e política do Brasil que teve papel essencial no voto da mulher e tem três sapos venenosos nomeados em sua homenagem— e uma coleção espetacular de arte nativa brasileira e de várias outras culturas espalhadas pelo mundo.

O museu, parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), era casa de 90 pesquisadores e funcionários.

Embora a causa do incêndio não tenha ainda sido estabelecida, bombeiros tiveram dificuldades em obter água inicialmente, pois dois hidrantes próximos estavam defeituosos. Tiveram que bombear água dum lago próximo para tentar controlar o fogo, com ajuda da CEDAE e da prefeitura da UFRJ.

A frustração de muita gente é mais do que justificada. O museu estava essencialmente abandonado, vítima do descaso das autoridades, e há muito precisava de obras de restauração. Mais uma ironia, um acordo havia sido assinado recentemente para renovar a proteção contra incêndios, mas não havia sido ainda efetuado devido a atraso na liberação de verbas.

Especula-se que a causa tenha sido um curto-circuito ou, pateticamente, um balão. Inacreditável, na era em que a conservação ambiental deve ser foco absoluto de todo o país, ainda haver balões liberados impunemente.

Claro, agora fala-se de restauração, especialmente como oportunismo político. Mas o ponto não é apenas a restauração do palácio destruído. É o acervo, perdido e irrecuperável. Quando queima uma casa, o que se pega antes do resto? Os objetos pessoais, aqueles que não podem ser repostos. Com o museu é a mesma coisa. Não se pode repor as peças que foram destruídas.

Pelo menos, sobreviveu o meteorito Bendegó, descoberto em 1784, o maior do Brasil. Composto de ferro e níquel, forjado durante o nascimento do nosso sistema solar cerca de 4,5 bilhões de anos atrás, ele resiste à indiferença humana, e continuará por aqui por muito mais tempo do que nós.

Quando um museu —a casa das musas— desta estatura queima, é difícil não pensar numa outra perda histórica, os vários capítulos escritos a fogo que destruíram gradativamente a Biblioteca de Alexandria, que abrigava grande parte do passado cultural do Ocidente.

Embora os detalhes de quem fez e quando foi continuem controversos, o objetivo da Biblioteca, fundada no século 3 a.C., era colecionar todos os escritos do mundo. Estima-se que guardava entre 40 mil e 400 mil papiros, incluindo as obras dos grandes filósofos e autores do passado —Platão, Aristóteles, Sófocles, Eratóstenes, Arquimedes, Hiparco etc—. Ninguém sabe ao certo o quanto foi perdido, apenas que a perda foi vasta.

Quando queima um museu e sua coleção é destruída todos perdem. Perdemos nossa memória coletiva, que nos ancora à nossa história. Perdemos a oportunidade de educar as futuras gerações sobre nosso passado. Que esta tragédia inspire uma mudança profunda de posicionamento quanto aos nossos patrimônios, que são mais do que tesouros nacionais e internacionais.

Sem memória, a cultura de uma nação se esvai no tempo, e seu futuro fica desnorteado. Os que não sabem de onde vieram não sabem para onde vão. Que não seja este o futuro do Brasil.

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