Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Leite

Banir canudinhos alivia consciência sem resolver poluição dos oceanos

Gisele que nos desculpe, mas modismos ecochiques não vão salvar o planeta

A hipocrisia pseudoambientalista não conhece limites. Virou moda demonizar os canudinhos de plástico, seguindo o exemplo virtuoso de Gisele Bündchen, que a revista Vogue promoveu a mãe da Terra --para a alegria de ONGs brasileiras em busca de celebridades para abraçar suas causas.

Nada a favor dos canudinhos, que fique bem claro. Seria melhor que essas próteses da fase oral não existissem para engrossar a avalanche de plásticos. Mas estigmatizá-los como inimigos planetários nº 1? Tenha paciência.

Garrafas plasticas em uma praia
Garrafas plasticas em uma praia - Joseph Eid/AFP

A santimônia plastificada decolou com o vídeo de 2015 em que uma tartaruga marinha aparece com o cilindro encalacrado na narina. São oito minutos para extrair o corpo estranho. O bicho sangra, abre a boca como se gritasse. Um verdadeiro horror.

Nascia ali um símbolo de fácil assimilação sentimental para a poluição dos oceanos com plásticos, um problema real. Estima-se que, a cada ano, 320 bilhões de quilos desse material sejam produzidos e descartados no ambiente.

Uma pequena parte disso vai parar no mar, talvez 8 bilhões de quilos. Outros 32 bilhões se acumulam nas praias, mangues e costões.

Ficaram famosas as imagens do acúmulo de detritos na grande faixa de lixo do Pacífico (GPGP, na abreviação em inglês de Great Pacific Garbage Patch), entre a Califórnia e o Havaí. 

Estudo de março na revista Scientific Reports, do mesmo grupo da Nature, calculou que 80 milhões de quilos flutuam por ali, numa área de 1,6 milhão de km2 (equivalente a cerca de um quinto do território brasileiro).

Muita gente acredita que os canudos formam parte considerável desse continente de detritos. Afinal, estima-se que só nos Estados Unidos 500 milhões de tubinhos sejam utilizados a cada dia (poucos sabem que o cálculo foi feito por um garoto de nove anos). Mas não é o caso.

Para começo de conversa, 40% dos plásticos não boiam no oceano, afundam. E os canudos quando muito representariam 0,03% do total desses resíduos que chegam ao mar.

Na realidade, 46% do lixo plástico em ambiente marinho são compostos por redes de pesca e outros implementos da indústria pesqueira, calcularam os autores do artigo na Scientific Reports. Pense nisso quando abrir sua próxima lata de atum.

Se for para expiar culpa, é melhor renunciar ao hambúrguer, além do canudinho do milk-shake. Carne bovina é um problema infinitamente maior para o planeta do que um pedaço de plástico.

A ameaça ambiental mais premente está na mudança do clima amplificada pelo aquecimento global. Seus efeitos estão por toda parte --dos incêndios na Califórnia, na Grécia e na Escandinávia às ressacas turbinadas que estão comendo a Ponta da Praia em Santos .

A pecuária responde sozinha por quase 15% das emissões globais de gases que agravam o efeito estufa. E essa participação tende a piorar, sob o rápido desenvolvimento socioeconômico da China.

Nas últimas três décadas, os chineses ampliaram o consumo de carne de 15 para 70 kg/pessoa/ano
Isso dá 28% do total mundial, o dobro do que se vende nos Estados Unidos, mas há que levar em conta o fato de a ingestão per capita ainda ser a metade da prevalente entre americanos.

Nem mesmo se você virar vegano vai fazer diferença para salvar o mundo. Precisaria antes combinar com 1,4 bilhão de chineses que, enfim, vão poder comer mais carne.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.