Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Marcelo Leite
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio Frias Filho fez da Folha uma fortaleza do jornalismo de ciência

Sob a direção de OFF, a Folha virou o principal reduto dessa modalidade desprestigiada de jornalismo

Muito se escreveu, e do melhor, sobre Otavio Frias Filho (OFF, como nos referíamos a ele na redação). Não haveria motivo, além de amizade e gratidão, para agregar mais um testemunho —a não ser para indicar o pouco destaque dado a seu empenho em favor do jornalismo de ciência.

Sabine Righetti tocou de passagem nessa qualidade ao relatar uma visita de OFF a Ann Arbor (sede da Universidade de Michigan, EUA) para conhecer de perto o programa Knight-Wallace Fellowship, com o qual a Folha tem parceria. Sabine falou mais de educação, mas anotou o entusiasmo dele com astronomia.

Otavio nasceu em junho de 1957, quatro meses antes do lançamento do Sputnik-1, primeiro satélite artificial posto em órbita pelo engenho humano. Fez 12 anos sete semanas antes do pouso do módulo lunar Eagle da Apollo-11 no Mar da Tranquilidade.

Não se sabe o que terá achado, na época, da manchete da Folha, “A Lua no Bolso”. Já diretor de Redação, elogiava a do jornal americano The New York Times: “Men Walk on Moon” (homens andam na Lua). Há poesia e grandeza, também, no jornalismo.

Homem na Lua
Em 1969, o homem foi pela primeira vez à Lua - Nasa

Como ele, toda uma geração cresceu em admiração pelo poder da ciência e da tecnologia em elevar os homens acima do horizonte terreno estreito e de soprar brechas nas brumas da superstição, das crenças e das ideias prontas, ainda que não de dissipá-las por completo.

Não espanta que o jovem Otavio, embora mais vocacionado para as artes, tenha aceitado o convite do pai —Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), outro entusiasta da ciência— para enveredar no jornalismo. Muitos éramos iluministas, então, praticantes de uma fé algo desiludida no avanço incremental da razão e da objetividade.

O jornalismo de ciência oferecia o máximo disso. Desenvolto das miudezas exasperantes da política, da economia, da cidade e da ideologia, permitia tratar de coisas reais do mundo físico e, ao mesmo tempo, iluminá-las com o foco poderoso do método e da matemática.

Assim a Folha se converteu, nos 34 anos em que OFF esteve à frente dela, no principal reduto dessa modalidade desprestigiada de jornalismo. O campo em que muitos consideravam desperdiçar-se o talento de nerds do calibre de Ricardo Bonalume Neto, Álvaro Pereira Júnior, Claudio Angelo e Salvador Nogueira. Mas não Otavio.

Os anos de 1989, com a queda do Muro de Berlim, e de 2001, com o 11 de Setembro, abalaram convicções e esperanças remanescentes sobre o aperfeiçoamento do gênero humano na via da ação política guiada pela razão. Foi em 1986, porém, que o fascínio exercido pela tecnociência sofreu um chacoalhão.

Em 28 de janeiro explodiu na decolagem o ônibus espacial Challenger, matando sete tripulantes. Em 25 de abril deu-se o desastre de Tchernobil, o mais grave acidente nuclear da história. Como compensação, ocorreu entre um e outro também a passagem do cometa Halley.

Desataram-se na Folha coberturas frenéticas, batismo de fogo para um jornalista formado seis anos antes na USP, estudante de mestrado em filosofia. O jornal ainda fazia o rescaldo das batalhas de implantação do Projeto Folha e do Manual de Redação, editores substituídos a toda hora, mas o diretor encontrava tempo para acompanhar com minúcia a edição das notícias sobre os eventos traumáticos.

Daí em diante as páginas de ciência só cresceram, incorporando depois temas emergentes como a questão ambiental, sobretudo após a reunião de cúpula de 1992, no Rio. Apesar de seu ceticismo diante do que via como uma forma de militância, OFF nunca desprezou o relevo que o assunto ganhava na esfera pública, no Brasil e fora dele.

A obsessão pluralista do jornal com o “outro lado” levou, decerto, a reproduzir aqui o desequilíbrio observado uma década antes na imprensa americana: tratar como iguais a franja e o cerne da ciência da mudança do clima, como se ambos “lados” fossem uniformemente movidos por ideologia (pró e contra o capitalismo, respectivamente).

O acúmulo de evidências sobre a mudança climática terminou por arrefecer a tensão, como seria de esperar num jornal em que os fatos contavam tanto, sob a liderança sóbria e implacável de Otavio. Prova disso está no investimento realizado na série em nove capítulos Crise do Clima, publicada no primeiro semestre deste ano.

Naquela altura, OFF já estava enfermo, mas com esperança —comedida, como tudo nele— de melhorar. Elogiou o trabalho, embora crítico do comprimento dos textos, talvez impaciente com o tema alheio às suas preocupações. Qual outro diretor de jornal aprovaria que se despendesse tanto trabalho e dinheiro nisso?

Conheci poucos espíritos com a coragem e o desassombro de Otavio. Nada mais apropriado que os três minutos de aplauso ouvidos em seu velório, enquanto tocavam as canções “Losing My Religion” e “Man on the Moon”, da banda americana R.E.M.

Há poesia e grandeza, também no jornalismo.

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