Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Tortura de verdade, ou a morte lenta da opinião pública

O emprego belicoso dos grupos de celular por Bolsonaro visa destruir não só Haddad, mas a própria imprensa e o valor dos fatos

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Quanto vale uma verdade? Nestes tempos de “pós-verdades” e “fatos alternativos”, muito pouco. Quase nada, o mesmo que muitas vidas humanas e regras do convívio civilizado –ou um exemplar de jornal.
 
Jair Bolsonaro (PSL) e seus acólitos seguem à risca as lições de Donald Trump e da “direita alternativa” dos EUA. O presidente americano, que pelo menos era um bem-sucedido bilionário, acredita saber o que precisa saber sobre mudança climática porque, diz, “tem um instinto para ciência”.
 
A ciência não tem lugar para instintos, nem para opiniões. Esses podem até ser o ponto de partida, mas na chegada ela se vê condenada a trabalhar com teorias e hipóteses confirmadas, ou não, por fatos observados, medidos ou produzidos em contexto experimental.

Mas quem se importa com fatos, além da boa e velha imprensa?
 
Certamente não Bolsonaro, nem seus seguidores. O capitão reformado, antigo adepto de bombas em quartéis, parece ter um instinto para a violência –contra os fatos e contra as pessoas.
 
Choca vê-lo no horário eleitoral defendendo a tortura, quando jovem. E, após um quarto de século no Congresso, dedicando ao coronel torturador Brilhante Ustra seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT).
 
Tais cenas são fatos, capturados para sempre nas memórias de silício para exibição instantânea em telas de cristal líquido. Palavras inesquecíveis, que ele nunca repudiou. Objetividade a toda prova, o mais próximo que podemos chegar da verdade.
 
No entanto, não faltam bolsonaristas para dizer que é tudo invenção do PT. Não querem acreditar, recusam-se a acreditar, talvez porque isso implicaria confrontar-se com a monstruosidade de seu comportamento.
 
Há explicações alternativas e piores, porém. Uma: sabem bem o que estão fazendo e reiteram as falsidades por espírito de porco. Outra: embarcam no bonde da tortura por cálculo e oportunismo.
 
Por outro lado, multidões se dispõem a depositar fé nas fantasias mais doidas, desde que levem água para o moinho do candidato a torturador. Mamadeiras com pênis de borracha na ponta. Dilma em vestido de baile ao lado de Fidel Castro. Comunistas na revista Economist. R$ 600 milhões para a Veja publicar reportagem contra Bolsonaro.
 
Esses memes (mentiras metódicas?) terminam compartilhados aos milhões. A imprensa, coitada, não é páreo para a avalanche de desinformação. Esfalfa-se para verificar a verdade ou falsidade de uma ou duas centenas de postagens; a cada bobagem que desmascara, centenas de outras ganham a praça digital.
 

 

 
Sábado retrasado (13), num seminário para jornalistas da Fundação Nieman em Harvard, Yochai Benkler projetou um gráfico que sintetiza bem o estado terminal da noção de opinião pública.
 
À esquerda da tela, uma constelação de bolinhas azuis (jornais e revistas mais compartilhados por eleitores do Partido Democrata) e verdes (compartilhados por progressistas e conservadores sem distinção); à direita, círculos vermelhos dos meios que atraem a atenção de adeptos do Partido Republicano, Trump et caterva. Um estudo quantitativo, baseado na análise de mais de 1 milhão de reportagens publicadas por 25 mil órgãos da imprensa americana.
 
De um lado, The New York Times, Washington Post e similares. De outro, Fox News, Breitbart e outros. Além das cores, o tamanho das bolinhas indicava a frequência de compartilhamentos, e linhas entre elas davam ideia da tendência das pessoas a reproduzir notícias e informações de uns e de outros.
 
Autor do livro “Network Propaganda” com Robert Faris e Hal Roberts, Benkler chamou atenção no seminário para dois aspectos reveladores do gráfico referente às cem fontes mais citadas no Twitter: um emaranhado de linhas ligava os círculos azuis e verdes entre si, enquanto os vermelhos se destacavam por uma rede separada, menos densa e menos intricada.
 
Na interpretação de Benkler, a figura mostra que a centro-direita desapareceu e que a extrema direita (no gráfico) tem características próprias, sendo mais insular: “Não é direita vs. esquerda, é direita vs. o resto”.

 


Parece com o Brasil pronto para eleger Bolsonaro? Sim e não.
 
Como sua campanha se sustenta mais no WhatsApp do que em redes como Twitter e Facebook, um gráfico desses seria mais difícil de traçar para esta eleição.
 
Embora a campanha do PSL tenha encontrado formas de mobilizá-los como veículos de comunicação e propaganda em massa, como mostrou reportagem de Patrícia Campos Mello, os grupos de WhatsApp são encriptados. Formalmente, apenas possibilitam conversas privadas, anônimas, que não podem ser rastreadas.
 
Se a esfera pública pode ser comparada com uma praça de comércio, o WhatsApp conduz à sua balcanização graças a reservas de mercado: certos setores só compram e vendem informações (leem e compartilham) entre si, sem expor-se à concorrência de mercadorias potencialmente melhores (ideias e fatos mais representativos da realidade).
 
É como escrevi num tuíte: “As Guerras Culturais acabaram. Eles venceram. Fatos, medições e ciência têm agora o mesmo valor que opinião e religião”.
 
O que faz um jornal diante de tamanha erosão de sua própria razão de ser? Aceita sem espernear o ostracismo paulatino imposto por quem não tem compromisso com a busca da verdade e lhe imputa falsamente a pecha de central produtora de “fake news”?
 
A melhor resposta até agora partiu de Marcelo Coelho, no artigo “Ele sim, ele não, tortura pode ser”. “O PT merece caminhões de críticas hoje e elas devem ser repetidas sempre. Mas nunca tivemos um defensor explícito da tortura como candidato —e disposto a cumprir a promessa”, escreveu o colunista.
 
Eis o fato, sim, inquestionável: nunca, desde que foram restabelecidas as eleições diretas por que tanto lutou a Folha, tivemos um defensor explícito da tortura como candidato. Um candidato que mobiliza os sentimentos políticos mais primitivos (medo irracional, agressividade, xenofobia, homofobia) para chegar ao poder, fiel à máxima de que os fins justificam os meios.
 
E ainda chamam o cara de mito. Houve um tempo em que imprensa, ciência e opinião pública existiam para desbancá-los.

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