Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Governo Bolsonaro começa com um infeliz 2019 a todos

Bobagens sobre grafeno dão medida da estatura do Bolsonaro presidente

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Com o perdão dos otimistas em causa própria, é preciso dizer que 2019 começa mal. Toma posse amanhã um governo que causa vergonha ao país porque muitos que moram e votam aqui escolheram as respostas mais simples –e erradas– para as inegáveis mazelas do Brasil.

Há algumas semanas leio todos os tuítes e postagens da família Bolsonaro. Vi também algumas transmissões ao vivo pela rede do futuro presidente. Quase tudo muito constrangedor.

Não se trata só dos erros de português e pontuação, nem da cafonice premeditada, muito menos da infantilidade virulenta dos filhos. O que mais incomoda a um jornalista de ciência está no elogio implícito da ignorância, tamanho o desprezo com fatos, evidências e conhecimentos científicos básicos.

Tome o caso do grafeno. Há na internet um vídeo de 2017 em que Jair Messias Bolsonaro, a pretexto de condenar a existências de terras indígenas, faz elogio rasgado a uma jazida de grafite no Vale do Ribeira (SP). Dizia então o pré-candidato que de cada quilo do material se podem extrair 150 gramas de grafeno, que valeriam US$ 15 mil.

Problema, diz o futuro presidente: a Funai teria levado para aquela região 67 índios, alguns “importados do Paraguai”. Toda a terra estaria requisitada pelo órgão para ser uma “reserva indígena” (coisa que não existe na legislação nacional).

Diz o homem que assume a Presidência da República amanhã: “É a velha máxima— não existe terra rica [em] que não exista também ali uma reserva indígena, ou [em] que esteja na iminência [de ser] demarcada uma reserva indígena” (as palavras entre colchetes foram incluídas para melhor compreensão).

Bolsonaro alude ao interesse de Estados Unidos, China, Japão e Coreia do Sul pelo “nosso” grafeno. A conclusão, óbvia, nunca explicitada por ele: a Funai e os povos indígenas estariam a serviço de interesses antinacionais, uma velha ladainha entre militares de direita.

Note que Bolsonaro não dá informações precisas no vídeo. Não diz exatamente onde está, nem que índios são esses, ou quando a Funai os levou para lá, de quando é a requisição da área, qual o nome da terra indígena.

A única afirmação verificável é que o grafite, por si só, quase não tem valor. Não tem mesmo. Se tivesse, os lápis que nossas crianças usam para aprender a escrever não custariam a bagatela que custam.

Bolsonaro não explica, contudo, que obter grafeno de grafite é um processo relativamente simples. Os pioneiros chegaram a usar fitas adesivas para arrancar de blocos de grafite a folha ultrafina de átomos de carbono que caracteriza o grafeno.

Também não disse que cientistas brasileiros já dominam muitas dessas técnicas. Nem que a Universidade Mackenzie, em São Paulo, tem há anos um centro de pesquisa dedicado ao material, o MackGraphe (Centro de Pesquisas Avançadas em Grafeno, Nanomateriais e Nanotecnologia).

Qualquer pessoa com um mínimo de cultura geral sobre inovação tecnológica saberia que a questão não é ter acesso a grafite para conseguir grafeno, mas conseguir produzi-lo com grau apurado de qualidade e, mais importante, desenvolver técnicas para aplicá-lo em dispositivos inovadores e patenteáveis.

Para dominar o grafeno e concorrer com EUA, China, Japão e Coreia do Sul, o Brasil não precisa desmontar a Funai nem perseguir índios importados do Paraguai, mas investir em laboratórios de pesquisa. Disso sabe o astronauta Marcos Pontes, o novo ministro da Ciência, e espera-se que o presidente se disponha a ouvir dele por que não passa de bobagem o que vem propagando.

Esse é só um exemplo das batatadas que ajudaram a eleger Bolsonaro, mas bem representativo do tipo de mistificações com que sua candidatura chegou à vitória eleitoral. Contra elas, esclarecimentos com os que vão acima se mostram quase inúteis e serão desqualificados de pronto como “fake news”.

É pouco provável que venha a ruir ainda em 2019 esse monumento à ignorância. Talvez nem mesmo em 2020, ou 2021, ou 2022, se uma eventual recuperação econômica der aos governantes e a seus apoiadores a ilusão de que estão certos.

Não estão, claro. Bom 2023 para todos.

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