Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Triplo amadorismo condiciona visão militar da Amazônia

Como sequela, o Brasil deixará de sediar a COP25, conferência da ONU sobre mudança climática

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Assim que comecei a me interessar pelas questões interligadas da destruição da floresta tropical e da mudança climática, nos anos 1980, topei com a doutrina da cobiça internacional sobre a Amazônia. Mais que espanto, impõe-se o enfado ao vê-la reencarnar como os moinhos de vento do Triplo A. 

No dom Quixote de Cervantes, paranoia, excesso de imaginação e falta de lógica compõem um tipo adorável, por seu anacronismo: um cavaleiro andante num mundo onde já não há donzelas por salvar. Quando o trio de afecções acomete a cúpula militar que tomou o Planalto, o enredo é de um triplo amadorismo. 

Como sequela, o Brasil deixará de sediar um evento diplomático importante, a 25ª conferência dos países que integram a convenção da ONU sobre mudança climática (COP25). Renunciou, voluntária e irrefletidamente, a projetar sua influência num debate mundial decisivo. Tudo isso por causa de um obscuro antropólogo americano naturalizado colombiano, Martin von Hildebrand.

Mapa ilustra corredor Andes-Amazônia-Oceano Atlântico
Mapa ilustra corredor Andes-Amazônia-Oceano Atlântico - Divulgação

O homem teve papel de destaque nas políticas de proteção de florestas e povos indígenas da Colômbia, mas só uma dose amazônica de paranoia conseguiria erigi-lo em orquestrador de uma conspiração global para destruir a soberania brasileira. Von Hildebrand lançou a ideia de montar um mosaico de unidades de conservação e terras indígenas protegidas na Amazônia, dos Andes ao Atlântico (daí o nome Triplo A).

Inspira-se no conceito conservacionista de corredor ecológico, um contínuo de áreas florestadas que garante o fluxo e a sobrevivência de espécies. Nada a ver com uma estrada para tanques e aviões, mas sim para antas e onças. E também para um monte de povos indígenas da região, beneficiados pela manutenção da mata em que se fundamenta seu modo de vida.

Como vantagem adicional, barrar a destruição da floresta contribui para conter a marcha do aquecimento global. Em suma: nações soberanas reunidas em encontros periódicos para coordenar entre si a melhor maneira de perseguir tais objetivos.

Von Hildebrand convenceu o então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, de que a ideia fazia sentido. Se não convencer o presidente de turno por aqui, pronto, o Brasil fica fora. Não está obrigado a nada. A proposta não integra nenhum dos compromissos voluntários do Estado brasileiro no Acordo de Paris.

Sua implementação, agora, será debatida na COP25 em outro lugar que não o Rio de Janeiro, Brasília ou São Paulo. Desistir de organizar a conferência depois de pleitear o privilégio, e por causa de um vínculo inexistente, não projetará a imagem de amadorismo só sobre a figura do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).

Haverá respingos também sobre o Itamaraty. Tudo isso por excesso de imaginação. Não é de hoje que militares brasileiros implicam com terras indígenas, que enxergam como “nações independentes” incrustadas no território nacional. Como ONGs indígenas e ambientais recebem dinheiro de fundações internacionais para realizar seus projetos, concluem que só pode ser para criar enclaves inacessíveis ao estado e às empresas agrícolas, de energia ou mineração. 

Não é o que diz a Constituição, em seu artigo 231, sobre as terras indígenas. Seus ocupantes têm a posse, não a propriedade dessas áreas, que são inalienáveis. Os índios têm o usufruto exclusivo das riquezas do solo e dos rios, mas seu eventual aproveitamento não está proibido. Exige, no entanto, autorização do Congresso Nacional, consulta dos ocupantes e sua participação nos resultados. 

Falta muita lógica, ainda, à monomania da cobiça internacional sobre a Amazônia, seu patrimônio biológico, mineral e hídrico. Comparam-no com o petróleo do Oriente Médio. Imaginam talvez que o objetivo oculto de Von Hildebrand e Santos, talvez do príncipe Charles, é preparar uma invasão para levar água embora em navios-tanque? Tomar à força os minérios que o Brasil já lhes vende? Realizar enfim a promessa visionária de drogas milagrosas contidas na biodiversidade, coisa que até hoje não se materializou? Algo desse naipe deve ser verdade, tem de ser verdade.

Afinal, o general Villas Boas tuitou, em 19 de setembro, que o Corredor Triplo A apresenta riscos para o Brasil. Se o comandante do Exército se preocupa com isso, é porque tem coisa aí –mesmo que não faça sentido.

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