Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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A síndrome de Havana e o grilo da mudança climática

Não se espante se o desmatamento crescer no ano em que ruralistas e negacionistas tomaram o poder pelo voto

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Não sei se o chanceler Ernesto Araújo tuitou apontando a revelação como fake news, mas cientistas parecem ter desvendado o mistério do suposto ataque sônico de Cuba a diplomatas americanos em Havana: eram grilos.

O estudo de Alexander Stubbs (Universidade da Califórnia, EUA) e Fernando Montealegre-Zapata (Universidade de Lincoln, Reino Unido) não descarta por completo a possibilidade de que os gringos tenham de fato sido alvos da ditadura cubana. Desfaz, entretanto, a principal evidência da suposta agressão: uma gravação do ruído feita pelos diplomatas e divulgada pela Associated Press.

O alegado atentado sonoro teria começado logo após Barack Obama reabrir a embaixada americana em Havana, em 2015. Vários funcionários precisaram ser repatriados após relatarem sintomas estranhos e sem causa determinada, como náuseas, dores de cabeça e perdas auditivas, no que ficou conhecido como síndrome de Havana.

Stubbs e Montealegre-Zapata analisaram o registro sonoro e concluíram que os responsáveis são os insetos caribenhos Anurogryllus celerinictus, ou algum parente. Os coitados dos grilos fazem o barulho infernal para atrair fêmeas, ou seja, só querem amor (como um general disse ter faltado a Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil de Jair Bolsonaro, ao demitir três centenas de funcionários de uma canetada só).

Grilos comestíveis na Coreia do Sul
Grilos comestíveis na Coreia do Sul - REUTERS

Sugestão para tuiteiros, trolls e robôs seguidores do novo governo: acusem Stubbs e Montealegre-Zapata de comunistas, ou espalhem que conspiradores globalistas cubanos conseguiram treinar grilos para enlouquecer os piedosos nacionalistas americanos.

 

Boa notícia trazida pelo Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais): as secas que se espalharam pelo território nacional a partir de 2013 arrefeceram em 2018. Mas não acabaram, note bem.

Em termos gerais para o Brasil, o relatório divulgado pelo Cemaden no último dia 8 indica que as chuvas no ano passado ficaram entre 14% e 20% menores que a média, mas acima do que em anos anteriores. Isso ajudou a encher vários reservatórios para produção de energia elétrica e abastecimento humano, ainda que não haja razão para relaxar.

Uma das razões para a criação do Cemaden foi a probabilidade de que o país enfrente mais e piores desastres naturais com o agravamento da mudança climática. Tomara que isso não seja razão bastante para a nova administração meter na cabeça que os cientistas ali abrigados estão conspirando contra a soberania nacional.

 

A má notícia é que a mudança climática se torna mais e mais irreversível, a julgar pelas tendências registradas nos campos físico e político.

Saiu nesta semana a informação de que os oceanos estão a aquecer-se mais depressa do que se previa. Para quem duvida, recomenda-se folhear o estudo na revista científica Science, da Academia Nacional de Ciências dos EUA.

Não é pouca diferença: na média, esse aquecimento tem velocidade 40% superior ao que previra cinco anos atrás o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na abreviação em inglês).

Sim, aquela bancada de milhares de pesquisadores que os mal denominados céticos do aquecimento global adoram acusar de alarmismo. Estudo após estudo vai ficando claro que o IPCC em realidade faz predições um tanto conservadoras (atenção, termocéfalos: “conservador” tem aqui sentido científico, não ideológico, ou seja, refere-se a cientistas que preferem ficar na defensiva e divulgar os valores mais baixos das projeções).

Os oceanos da Terra absorvem mais de 90% do calor adicionado à atmosfera pelo dióxido de carbono (CO2) resultante da queima de combustíveis (carvão, petróleo e gás natural) e da derrubada de florestas, assim como pelo metano (CH4) emitido pelo gado favorito dos pecuaristas brasileiros, tão bem representados no novo governo.

Essa absorção nada tem de positiva, porque a temperatura do mar é um fator poderoso a influenciar o clima e, por extensão, a meteorologia. Secas no Nordeste? Tudo a ver com a temperatura do Atlântico e do Pacífico, em especial num ano de El Niño como promete ser 2019 (90% de chance).

Quer mais motivo para preocupar-se, além da penca de negacionistas do clima instalados no governo Bolsonaro? Os Estados Unidos, diante de cujo presidente nossos dirigentes se ajoelham, voltaram a emitir mais gases do efeito estufa em 2018, aponta um levantamento preliminar.

Após três anos em queda, e apesar do fechamento de usinas termelétricas movidas com o ultrapoluidor carvão mineral, houve crescimento de 3,4%. Nas duas últimas décadas, só 2010 teve um aumento maior de emissões de carbono, quando a economia americana começou a sair da recessão —o que não é o caso agora, com a atividade de vento em popa.

Parte do aumento decorre da maior demanda por energia com as temperaturas muito baixas do outono e deste inverno. Se as fontes alternativas de energia tivessem crescido mais, porém (coisa que não figura na agenda do presidente Donald Trump, imitado por Bolsonaro com bem menos talento histriônico e não muito menos potencial para prejudicar a atmosfera e o clima), isso seria facilmente compensado.

Não se espante se o desmatamento na floresta amazônica e no cerrado, nossa maior fonte de poluição climática, aumentar neste 2019 em que ruralistas, antiglobalistas, militaristas e negacionistas tomaram o poder pelo voto. Sim, democraticamente, o que torna tudo mais difícil e lamentável.

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