Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Leite

Novo otimismo, velha barbárie

Queremos acreditar que o fim da pobreza está próximo, mas é lorota de Pinker e Gates

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Admiradores do paleontólogo e ensaísta Stephen Jay Gould nutrem desconfiança com herdeiros da sociobiologia refugiados em sua versão remasterizada, a psicologia evolucionista. Mais razão ainda têm para desconfiar quando os descendentes se tornam ideólogos do Ocidente e do livre mercado, como Steven Pinker.

Pinker, depois de escrever “Os Anjos Bons de Nossa Natureza”, lançou “O Novo Iluminismo”, que Bill Gates tem por seu livro favorito. No primeiro, sustenta que a violência diminuiu ao longo da história. No segundo, que a ciência e o capitalismo vão extinguir a miséria.

São resumos simplórios, quiçá injustos, de livros que não precisam ser lidos. Para isso existem as resenhas, que podem nos presentear com o paraíso da descoberta de um autor brilhante ou com a fuga de roubadas homéricas.

Bill Gates durante discurso em conferência de combate ao HIV
Bill Gates durante discurso em conferência de combate ao HIV - Ludovic Marin/AFP

Cabe agradecer a Jessica Rifkin, assim, pela graça alcançada com sua apreciação devastadora de “O Novo Iluminismo” na Los Angeles Review of Books. O título do texto diz logo a que vem: “A Filosofia Poliânica de Pinker e sua Política de Perfídia”.

Rifkin chama atenção para a crítica de uma ideia central do Novo Otimismo de Pinker e Gates, a de que nunca houve tão pouca gente vivendo em pobreza extrema. 

Um gráfico —outro “favorito” de Gates— muito reproduzido por colunistas neoliberais indica que os miseráveis eram 94% da população mundial em 1820 e hoje seriam só 10%.

Dito de outra maneira, está tudo dando certo. Insurgir-se contra a desigualdade seria um erro, pois os mesmos processos que permitem a emergência de diferenças obscenas de renda teriam melhorado a vida de todos, ou pelo menos de cada vez mais gente.

Só se recusariam a enxergar o óbvio “progressistas que odeiam o progresso” (uma das frases de efeito de Pinker, que também deplora “intelectuais que odeiam a razão”). 

Ocorre que a suposta evidência já foi demolida pelo antropólogo Jason Hickel.

Sua primeira objeção vai contra a aparência de que se trata de dados objetivos, como se não comportassem interpretação e, portanto, crítica. 

Hickel argumenta que dados confiáveis sobre pobreza só ficaram disponíveis a partir de 1981 e fulmina a fonte de Pinker e Gates, infográficos reunidos por Max Roser na página Our World in Data (nosso mundo em dados).

“Roser lança mão de uma base de dados que nunca pretendeu descrever pobreza, mas sim a desigualdade na distribuição do PIB mundial —e isso só para uma gama limitada de países”, escreveu Hickel no diário britânico The Guardian. “Não é ciência, é rede social.”

A extrema pobreza referenciada no gráfico se baseia no limiar de US$ 1,90 per capita por dia, critério adotado pelo Banco Mundial. Aqui, daria coisa de R$ 8 diários por pessoa, ou R$ 240/mês, marca de pobreza extrema abaixo da qual viviam 13,5 milhões de brasileiros em 2018.

É uma linha exagerada e cruelmente baixa, afirma Hickel. Com efeito, numa família de quatro pessoas no Brasil, não totalizaria nem um salário mínimo. Imagine o leitor como seria viver com isso.

O antropólogo cita trabalhos que defendem limiares mais adequados para garantir segurança alimentar e sanitária, como uma renda per capita diária de pelo menos US$ 7,40 (R$ 30). Com base nesse critério, o número de miseráveis tem aumentado —e não diminuído— desde 1981, chegando a 4,2 bilhões de pessoas, ou mais da metade da população mundial.

Bom Natal para todos que podem ler jornal e compartilhar uma ceia com a família. É um privilégio.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.