Este sábado foi um raro 29 de fevereiro, data bissexta em que tudo pode acontecer. Na tradição de algumas terras europeias em tempos medievais, era o único dia em que mulheres poderiam pedir homens em casamento, e não vice-versa.
A ideia era contrabalançar, de maneira simbólica, o excesso de poder masculino (assim como só no Carnaval se permitia —antigamente— recorrer à fantasia para subverter as convenções). Caso o homem recusasse a proposta, teria de comprar 12 pares de luvas para a enjeitada, a fim de que ela pudesse ocultar a ausência do anel de noivado.
Como a efeméride só acontece de 4 em 4 anos, foi uma rara oportunidade (desperdiçada) para Jair Bolsonaro ser veraz, para variar. Ou calçar luvas de pelica.
Nesse mundo invertido, se o presidente parasse o carro na saída do palácio da Alvorada, não falaria à manada de apoiadores e ao saco de gatos da imprensa. Se falasse, não mentiria nem agrediria ninguém e nenhuma instituição.
Teria sido um grande dia: sem notícias fraudulentas, sem lacração nas redes sociais, sem muxoxos de liberais arrependidos, sem girar a roda de moer fatos e informações verificáveis. Em sonhos, talvez.
Na real, está aí o coronavírus Cov-2 para instilar certo senso de veracidade em parte da administração federal. O jornalista Claudio Angelo já assinalou num tuíte a ironia fascinante de ver Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde de um governo que tem na mentira seu método, implorando à população não acreditar em “fake news”.
Vai ser difícil enfiar o gênio maligno de volta na garrafa. Se dia após dia a família presidencial comemora como libertação do povo diante da imprensa as baixarias e calúnias contra as jornalistas Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães, por que as pessoas deixariam de buscar informações sobre a virose em grupos de mensagens estanques?
Por uma razão simples: a desinformação que ali campeia pode ter consequências funestas. Corre risco maior de contrair a doença quem não souber distinguir o que tem eficácia comprovada daquilo que não tem.
Por exemplo, se o cidadão for convencido de que chá de canela protege mais contra a infecção do que lavar as mãos. Ou, então, de que orações e o pregador apoplético a lançar perdigotos sobre fiéis aglomerados —católicos ou evangélicos— têm mais poder sobre o coronavírus que orientações de profissionais de saúde qualificados.
A onda de descrédito que levou um pária militar e parlamentar medíocre ao Planalto não erodiu só o ideal de opinião pública esclarecida, mas a sempre provisória autoridade da ciência. Mandetta agora prega fé nos canais e saberes instituídos, mas Heleno, Moro, Salles e Damares encarnam o verdadeiro DNA do bolsonarismo quando desprezam evidências para promover causas retrógradas.
Os incapazes de reconhecer abusos da Lava Jato e impulsionamento de “fake news” na campanha eleitoral, mesmo diante de informações comprovadas, são com frequência os mesmos que deixam de levar seus filhos para vacinar e pregam a abstinência como método anticoncepcional estatisticamente eficaz.
Se fazem vista grossa para rachadinhas e milicianos, não será surpresa se acreditarem que o Cov-2 foi criado num laboratório da Rússia. Com financiamento de George Soros e patente depositada por Bill Gates, não menos.
Este sábado foi um raro 29 de fevereiro. Perdemos a chance de rezar para que o ministro Mandetta fosse mais ouvido que seus colegas da Esplanada, para que o surto de coronavírus não assumisse aqui as proporções do flagelo caído sobre os chineses, para que evidências e fatos enfim viralizassem, suplantando as falsidades.
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