Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Descrição de chapéu Coronavírus

Desinteligência artificial agrava Covid-19

Algoritmos que privilegiam estridência estão derrotando os que favorecem altruísmo

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Terça-feira (28) participei de uma teleconversa curiosa, sobre inteligência artificial (IA) e humanização da medicina. Parecia contradição nos termos, em especial nesta pandemia de Covid-19, ou debate sobre sexo dos anjos, quando estamos fracassando já na antessala da alta tecnologia –realizar testes diagnósticos, contar mortes corretamente e produzir dados estatísticos confiáveis.

O encontro virtual, que vai ao ar amanhã, faz parte de uma série (youtube.com/rio2c) que vem substituir a conferência sobre economia criativa Rio2C, cuja realização neste mês foi cancelada. Coube-me moderar o diálogo entre Sonoo Thadaney, do Presence ­–centro da Universidade Stanford dedicado à humanização do atendimento de saúde–, e Jorge Moll Neto, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), conhecido como Gito.

O presidente Jair Bolsonaro posa para uma selfie com apoiadores durante ato em Brasília
O presidente Jair Bolsonaro posa para uma selfie com apoiadores durante ato em Brasília - Evaristo Sa/AFP

O coronavírus CoV-2 já legou cerca de 3,5 milhões de infectados e 250 mil mortos (números subestimados). A pandemia é agravada por líderes de nações populosas que chegaram ao poder e nele se mantêm espalhando desinformação com ajuda de algoritmos de redes sociais que privilegiam a estridência e os vieses de confirmação de seus seguidores.

Você entendeu: Donald Trump (EUA, 1/3 dos casos no mundo) e Jair Bolsonaro (Brasil, um distante cerca de 3% do total, mas marchando para números dantescos). Trump corrigiu alguns graus no curso na nau de desvairados em que se tornou a Casa Branca; o Messias que não faz milagres ainda não deu sinais de imitá-lo, porque neste caso seria fazer a coisa certa.

Na teleconversa da Rio2C, Sonoo e Gito fizeram as perorações de praxe contra a substituição da ciência por ideologia na condução da pandemia. O diretor do Idor deu a entender que nunca viu tanta besteira saindo da boca de leigos e autointitulados especialistas.

A diretora do centro de Stanford, originária da Índia, disse que, se precisar preparar um frango tandoori, vai ligar e perguntar para quem sabe fazer. E não para qualquer médico que se aventura nos mares da epidemiologia dizendo que a Terra é plana, deduzo eu, para encompridar a metáfora, na esperança de que leitores brasileiros entendam de que deputado se trata.

Há razão para ver o vídeo da conversa (com legendas em português) e sair um pouco otimista. Gito afirmou que se dá mais importância e visibilidade para consequências não pretendidas negativas da tecnologia.

No caso, a IA e seus algoritmos dinâmicos, que tomam resultados em conta para indicar soluções, como apresentar em cada linha do tempo na rede social as notas com maior probabilidade de atraírem novos seguidores e de serem reproduzidas, curtidas ou comentadas (o chamado engajamento, que muitos confundem com sucesso).

Um bom nome para isso seria desinteligência artificial. A cizânia se espalha porque os usuários aprendem que receberão mais cliques quanto mais agressivos forem, substituindo por raiva os argumentos de que não dispõem para confirmar as próprias convicções e as daqueles que pensam como ele (viés de confirmação).

Já se pregou no passado que se deve acreditar mesmo que seja absurdo, ou porque absurdo (ouçam os “améns” com que fanáticos brindam Bolsonaro). Também já se disse que o sono da razão produz monstros.

O neurocientista do Idor prefere desviar a atenção para efeitos não pretendidos positivos das tecnologias. Cita as possibilidades abertas para enfrentar a Covid-19 com telefones celulares de última geração disseminados pelo mundo, mesmo em países pobres, como difusão de informação e bases de dados para monitorar mobilidade em tempos de isolamento social.

Há também os aplicativos multiusuário de conversa com vídeo, que facilitam o contato para coordenação entre colegas trabalhando em casa, a deliberação parlamentar a distância e, claro, as teleconsultas entre médicos e pacientes.

Sonoo diz que a IA libera profissionais de saúde para exercerem mais o que está na base da medicina, cuidar de pessoas de carne e osso. Mesmo que seja em ambiente virtual, o grande médico se diferencia do médico apenas bom por tratar o doente, não a doença.

Fica tudo mais complicado quando o espectro do contágio pelo corona paira sobre todos e uma interface de vídeo ou a parafernália na UTI afasta o doutor do enfermo. Mas há dicas simples para humanizar esses encontros, de portar uma foto da pessoa por trás da máscara a perguntar a origem de objetos que se vê pela tela na casa do paciente (mais sugestões em inglês aqui: youtu.be/DbLjEsD1XOI).

Conversamos ainda sobre diversidade, equidade, acesso e outras coisas importantes. Para terminar, contudo, cabe destacar o chamado de Gito para embutir valores nos algoritmos e chamar filósofos e outros especialistas de humanidades para as equipes que inventam aplicações de IA.

Os dois governos mencionados, porém, são inimigos da humanidade, no singular (empatia, mas também conjunto de mulheres, homens, velhos, crianças, enfermos, sãos, deficientes, atletas, patriotas ou não, ateus e crentes) e no plural (disciplinas que se ocupam das fontes e razões do que dá certo ou dá errado nas sociedades humanas e na cabeça das pessoas que as compõem).

São os reis eleitos da desinteligência artificial.

Erramos: o texto foi alterado

O Brasil concentra cerca de 3% dos casos do novo coronavírus no mundo, não 0,2%, como havia sido publicado de início. 

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