Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Fogo, última gota sobre a Amazônia

De joelhos pelo corona, região arrisca cair de vez sob lança-chamas de Bolsonaro

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Mesmo que o epicentro da epidemia de Covid-19 seja São Paulo, a Amazônia se encontra em situação pior. E o bicho vai pegar feio por lá com a aproximação da temporada de queimadas —poderá ser a última gota para fazer colapsar de vez um sistema hospitalar já precário.

Os piores indicadores do coronavírus no Brasil estão no estado do Amazonas. São mais de 36 mil casos confirmados e, na proporção por habitantes, bate São Paulo: mais de 900 doentes por cem mil pessoas, contra uns 230 no líder do Sudeste.

Olhando para as mortes pelo vírus Sars-CoV-2, o quadro também é pavoroso. No AM há 499 por milhão de habitantes, contra 157 em SP (onde a epidemia começou pelo menos três semanas antes), segundo levantamento de Marcelo Soares.

Isso sem falar na subnotificação, que deve ser galopante na região Norte. Apesar dela, as mortes por milhão no Amazonas estão no nível do que se verificou nos países mais afetados, como Espanha, França e Suécia (respectivamente 580, 440 e 431 por milhão, de acordo com a página do Our World in Data.

Para complicar as coisas, dois fatores –desmatamento e estiagem– concorrem para que a estação do fogo a iniciar-se nas próximas semanas seja das piores nos últimos anos. A fumaça piora a qualidade do ar nas cidades amazônicas e, mesmo sem Covid-19, enche os hospitais da região com síndromes respiratórias nos anos de muita queima.

O alerta aparece em nota técnica do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de Luiz Aragão, Celso Silva Junior e Liana Anderson. Seu título, auto-explicativo, é “O Desafio do Brasil para Conter o Desmatamento e as Queimadas na Amazônia Durante a Pandemia por Covid-19 em 2020: Implicações Ambientais, Sociais e sua Governança”.

Em primeiro lugar aparece o desmatamento em alta. Até meados de maio, o Inpe indicava já terem sido destruídos 89% de tudo que se derrubou em 2018/19, quando houve aumento de 30% e a área devastada chegou a 9.762 km².

Faltam ainda dois meses mais secos, junho e julho, favoráveis ao corte raso e às queimadas, para fechar a nova cifra oficial (o “ano fiscal” do desmate vai de agosto a julho). Desmatadores, legais ou ilegais, aproveitam a secura para atear fogo à biomassa caída e enleirada, ou seja, reunida em fileiras.

Em segundo lugar, os autores chamam atenção para o fato de as águas do oceano Atlântico apresentarem nestes primeiros meses de 2020 temperaturas acima de toda a média histórica. Esse tipo de anomalia costuma vir associado com estiagens acentuadas no sudoeste da Amazônia, como o estado do Acre.

O clima seco favorece tanto a realização de novas queimadas quanto sua propagação acidental ou intencional para matas adjacentes. Surgem os incêndios florestais, de controle dificultado pela matéria seca acumulada no solo em áreas degradadas, como aquelas em que ocorreu retirada clandestina e seletiva de madeira.

Projeções estimam que a área desmatada na Amazônia neste ano galgue pelo menos outros 30% e ultrapasse a marca de 12 mil km². Mais fumaça e fuligem invadirão as vilas e cidades amazônicas, sobrecarregando ambulatórios já lotados pelo coronavírus.

Em meio à dupla emergência anunciada, Brasília brinca de dar uma no cravo e outra na ferradura. O sinistro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmava antes das queimadas que pretendia usar a atenção monopolizada pelo coronavírus para passar a boiada da desregulamentação (leia-se: desmonte) de normas de preservação.

O encarregado de manietar Ibama e ICMBio será, porém, atropelado pelo fogo. Sentindo o calor, saiu-se há pouco com um esquizofrênico “Plano Nacional para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação de Vegetação Nativa 2020-2023”.

À luz de seu prontuário e dos incêndios, parece uma piada de mau gosto. O plano fajuto de Salles cita dados do Inpe (aqueles que o presidente Jair Bolsonaro acusou de serem falsificados) e chama o terceiro setor (ONGs) para colaborar. Rá.

Melhor dizendo, não será Salles quem sairá chamuscado. Assim como no caso das mortes da Covid-19, os militares serão lambidos pelo fogo. Bolsonaro pôs o vice-presidente, general Hamilton Mourão, velha raposa da doutrina paranoica da cobiça internacional sobre a Amazônia, para cuidar do galinheiro em chamas.

O plano é coisa do vice. Foi feito para norueguês e alemão verem. Na semana passada, Mourão reuniu-se com embaixadores dessas nacionalidades para tentar ressuscitar o bilionário Fundo Amazônia despachado para uma cova rasa por Salles (retirado pelo vice da chefia do comitê orientador do fundo).

O general está preocupado com a imagem do país e com o fato de Tereza Cristina (Agricultura), que antes do governo Bolsonaro era conhecida no Brasil como Musa do Veneno, já ser chamada no exterior de Mrs. Deforestation. Em sua operação globalizante de relações públicas, comanda operações militares teatrais na Amazônia com raros fiscais do Ibama, objeto do ódio presidencial.

São Paulo e outros estados do Sudeste e do Sul, mal ou bem, têm alguma estrutura para enfrentar a Covid-19. A Amazônia, posta de joelhos pelo coronavírus, corre o risco agora de sucumbir de vez aos incendiários do governo Bolsonaro.​

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