Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Descrição de chapéu Coronavírus

Rebanho, não

Se chegamos a ponto tão baixo com Bolsonaro e Covid-19, foi por escolha

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“Plantel não, plantel é de bois e cavalos”, protesta Moreira da Silva na canção. “Flamengo não tem plantel, Flamengo tem atletas, tem elenco, tem craques da pelota, tem doutor, tem bacharel.”

Desde que começou a pandemia de Covid-19, muita gente implicou —com razão— com a expressão “imunidade de rebanho”. Soa melhor falar em imunidade coletiva, comunitária, pois é de seres humanos que se trata.

Pior se mostrou a defesa do conceito, por uns poucos desnaturados, como estratégia de enfrentamento do coronavírus. Na falta de vacina, bastaria esperar que pelo menos 60% da população fosse infectada para o patógeno deixar de circular e o flagelo desaparecer.

Na Suécia e no Reino Unido, autoridades flertaram abertamente com a ideia; deu no que deu, mortalidade galopante. Bolsonaro chegou bem perto do disparate quando falou: “E daí?

No Brasil, isso daí daria 127 milhões de infectados e uns 5 milhões de mortos. Tá OK?

Ainda estamos em mais de 2 milhões de casos e quase 80 mil óbitos registrados. Números altos demais, que já nos dão a vice-liderança no campeonato mundial de incúria, após dois meses sem ministro da Saúde.

Nesta semana o rebanho voltou à cena, tangido pela queda de casos novos em cidades castigadas cedo pela pandemia, como São Paulo, Manaus, Belém e Rio. Como em nenhuma delas a quantidade de infecções detectadas sequer chegou a 20%, cresceu a desconfiança de que o limiar da imunidade coletiva seja menor que 60%.

A hipótese veio amparada num estudo na revista Science de 23 de junho (embora uma pesquisa de maio no medRxiv já tivesse levantado a lebre, com participação do brasileiro Caetano Souto-Maior). Pesquisadores da Suécia e do Reino Unido (não por acaso?) calcularam que essa fronteira de imunização comunitária poderia ser de 43% dos habitantes.

Chegaram à cifra introduzindo em seu modelo matemático a noção de heterogeneidade. Em poucas palavras, levaram em conta que nenhuma população é uniforme, composta de indivíduos igualmente suscetíveis a contrair o vírus Sars-CoV-2.

As pessoas diferem em idade, estado de saúde, gênero, ancestralidade, fatores genéticos, estilo de vida etc. Com o avanço da pandemia, a ciência vai descobrindo que alguns desses fatores podem influenciar se uma pessoa pega a doença, se desenvolve sintomas e se corre risco de morrer.

Incluindo as diferenças de vulnerabilidade no cálculo, recua aquela nota de corte para a imunidade coletiva. Além disso, à medida que o vírus se espalha, diminui o número de pessoas suscetíveis, pois algumas morrem e as que sobrevivem ganham defesas contra ele.

Qual tipo de defesa? Eis outra discussão acesa entre especialistas. Até há pouco se falava mais em anticorpos, que podem ser detectados nos testes rápidos (sorológicos), mas há cada vez mais indícios de que pelo menos algumas pessoas vencem o corona por meio de células de defesa (linfócitos T).

Como não há exames para detectar tais células, levantamentos que só buscam anticorpos provavelmente deixam de identificar algumas das pessoas que tiveram Covid-19. E há evidências a indicar que a defesa por anticorpos decai com o tempo.

O mais importante, contudo, é que medidas de prevenção —máscaras, distanciamento, álcool gel— também limitam, óbvio, a quantidade de pessoas em condições de se infectar. Quanto mais elas se protegem, mais se combate a epidemia.

Rebanho? Não. Não somos rebanho porque podemos decidir aonde queremos chegar.

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