Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Médicos de Trump atiram para todo lado

Equipe indica gravidade do caso ao receitar remédios experimentais e kit duvidoso, mas sem cloroquina

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Há quem diagnostique, no tratamento das respectivas infecções presidenciais com o coronavírus Sars-CoV-2, uma profunda diferença entre Brasil e Estados Unidos: lá, quando o bicho pega, recorre-se à ciência; aqui, à cloroquina.

Até certo ponto é verdade. No entanto, as conclusões a extrair das tentativas terapêuticas a que Donald Trump se submeteu, pelo que se sabia na manhã de domingo (4), são ambas preocupantes: 1. O caso do presidente americano é grave; 2. A estratégia dos médicos da Casa Branca tem algo de barata-voa farmacológica.

Dois dos medicamentos ministrados a Trump, remdesivir e REGN-COV2, são frutos de pesquisa científica recente, de primeira linha. E são eles, também, a sugerir que o estado do republicano deve ser pior do que a equipe do jaleco branco quis fazer crer na confusa entrevista de sábado (3) à porta do hospital Walter Reed.

A equipe médica recorreu ainda a um kit extravagante de outros compostos, desses que farmácias brasileiras e médicos sem apuro científico adoram vender para desavisados: zinco, vitamina D, melatonina, aspirina e antiácido. Note que a cloroquina não está entre eles, para desgosto da família Bolsonaro.

O remdesivir, desenvolvido pelo laboratório Gilead contra o vírus ebola e os coronavírus das pandemias Sars e Mers, é a primeira droga aprovada pela agência americana FDA contra o Sars-CoV-2. Detalhe: a autorização só vale para uso emergencial em pacientes hospitalizados com doença grave.

A internação de Trump, portanto, não teria ocorrido só por excesso de cautela, como propagou a versão oficial. Ou sua condição já inspirava cuidados que só um hospital avançado pode oferecer, ou ele foi transferido precisamente para poder tomar o medicamento repeitando a indicação oficial.

O antiviral da Gilead enfrentou três testes clínicos randomizados controlados (RCTs, padrão ouro da pesquisa biomédica). Comprovou-se ser seguro, reduzir o tempo de recuperação, melhorar o estado clínico do paciente e, mais importante, possível redução de mortalidade –possível, é bom repetir.

Num dos ensaios (NIAIDACTT-1), com 1.060 pessoas, constatou-se que a maior parte dos pacientes hospitalizados com dano pulmonar tratados com remdesivir se recuperava em 11 dias, contra 15 dias no grupo que recebeu droga inócua (placebo). Observou-se alguma redução na mortalidade, mas não foi possível excluir que o resultado seja fruto do acaso.

Noutro estudo (Severe Study 5773/5807), que comparou 312 pacientes graves tratados com remdesivir a 818 que receberam tratamento padrão, o risco de morte calculado reduziu-se de 12,5% para 7,6%.

Além dos EUA, o remdesivir conta com aprovação na Europa, na Austrália, no Japão, no Canadá e noutros seis países. No Brasil, o pedido de autorização foi enviado à Anvisa em 6 de agosto. Comercializado sob o nome Veklury, cada frasco custa US$ 520 (cerca de R$ 3.000), e o tratamento dura de 5 a 10 dias.

A segunda droga ministrada a Trump, REGN-COV2, é ainda mais experimental. Os quatro testes clínicos com o medicamento da Regeneron sequer foram concluídos.

A empresa anunciara em junho que dois artigos sobre sua dupla de anticorpos haviam sido aceitos para publicação pela revista Science (o que ocorreria na edição de 21 de agosto). Depois, em 29 de setembro, divulgou dados preliminares dos ensaios em curso.

Por ora, o preparado REGN-COV2 provou ser capaz de reduzir a carga viral de pacientes infectados. Também se verificou quantidade menor de visitas ao médico entre os não hospitalizados. Mais de 2.000 pessoas haviam tomado o medicamento até aquele dia, e nenhuma morte ocorrera.

O remédio emprega uma estratégia baseada na seleção natural darwiniana, que os apoiadores fundamentalistas de Trump e Bolsonaro renegam. Mais exatamente, a droga cria uma armadilha para os vírus que se valem dela para tentar vencer as defesas do organismo.

Uma linha crucial de defesa são anticorpos, que se ligam à espícula do Sars-CoV-2 na tentativa de inutilizar essa chave que abre as portas das células para a multiplicação do coronavírus e a consequente destruição delas. A Regeneron selecionou dois deles, com ajuda de camundongos geneticamente modificados para parecerem humanos, e os empacotou juntos no REGN-COV2.

É um golpe duplo, pois os dois anticorpos se ligam a locais diferentes da espícula. Caso o vírus sofra uma mutação que impeça o acoplamento e a inutilização da chave num desses sítios, ganharia uma vantagem evolutiva enorme e passaria a produzir mais cópias do que suas variantes não mutadas.

Ocorre que o outro anticorpo na dupla da Regeneron ainda continuará disponível para inativar a espícula, impedindo a invasão das células. E é praticamente nula a chance de que o vírus sofra mutações concomitantes nos dois alvos visados pelo medicamento. Darwin explica.

Assim como o presidente Jair Bolsonaro, Trump também dedicou muitos meses decisivos a minimizar a pandemia, menosprezar centenas de milhares de mortes de compatriotas e fazer propaganda da cloroquina. Mas na hora do aperto, aquela em que a realidade o reduziu à insignificância mortal, correu para os braços da ciência.

Para azar dos brasileiros, Bolsonaro mostra mais coerência em seu combate ao conhecimento científico, à razão, ao bom senso e à humanidade. Mais uma diferença entre Brasil e EUA: os mortos da Covid-19 no turno do capitão são 682 por milhão de habitantes, contra 630/milhão do topetudo americano abatido pelo corona.​

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