Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Aos 20 anos, genoma beneficia mais os brancos e ricos

Duas décadas depois, ciência obteve só um vislumbre da complexidade da saúde e das doenças

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Nesta segunda-feira (15) completam-se 20 anos da publicação da sequência do DNA da espécie pela revista Nature. A soletração de 3 bilhões de caracteres genéticos foi façanha do Projeto Genoma Humano (PGH), iniciativa de instituições públicas lançada uma década antes.

No dia seguinte, a concorrente Science divulgou outro sequenciamento, realizado pela empresa Celera. Quase oito meses antes, as duas iniciativas tinham acordado encerrar uma concorrência predatória e fazer a divulgação simultaneamente.

O investimento público na empreitada somou US$ 5,4 bilhões (em valores atualizados). Ao celebrar o acordo entre PGH e Celera, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, justificou-o dizendo que os netos só ouviriam falar de câncer como um signo do zodíaco. Estamos perto disso?

Três homens, um ao lado do outro
Da esq. para a dir., Craig Venter, da Celera, Bill Clinton, ex-presidente dos EUA, e Francis Collins, do Projeto Genoma Humano, durante anúncio, em Washington (EUA), do trabalho na decodificação do genoma humano - Joyce Naltchayan/AFP

Resposta curta: não. As hipérboles foram deixadas de lado, em favor de uma visão mais proporcional aos avanços realmente alcançáveis com base no sequenciamento. Ninguém mais fala em Livro da Vida nem em Manual de Instruções.

Muito se aprendeu, claro. Mas pessoas familiarizadas com o assunto já sabiam, na época, que o translado da informação genômica para a prática clínica —a chamada medicina de precisão, personalizada— iria demorar. Demorou e demorará.

A busca pelo gene disso e daquilo —câncer, esquizofrenia, obesidade etc.— era um conceito útil para propaganda, porém equivocado. Tais condições resultam da interação entre muitos genes e proteínas do corpo com o ambiente, e a pesquisa evoluiu para os estudos de associação no genoma todo (GWAS, na sigla em inglês).

Funciona assim: comparando as sequências de um monte de gente com determinada característica ou moléstia, computadores pescam entre zilhões de letrinhas aquelas que essas pessoas compartilham. Podem ser genes inteiros ou até letras isoladas, os polimorfismos de nucleotídeo único (SNP, em inglês).

Começa aí o trabalho duro de investigar o que essas variantes genéticas possam ter a ver com a doença. Com sorte se descobrirão as funções (ou disfunções) em que estão envolvidas, e com mais sorte ainda se chegará a uma droga ou tratamento.

O processo depende de haver muitas pessoas com genomas disponíveis em bancos de dados. Só que as diversas bases com acervos de informações não falam bem umas com as outras; além disso, para proteger a privacidade de quem forneceu DNA, há barreiras burocráticas para um pesquisador baixar os dados.

Poucos genes são muito estudados, como o TP53, envolvido em vários tumores. Outra estrela é o TNF, ligado a 160 doenças. Pesquisadores preferem apostar nos cavalos premiados em vez de arriscar suas carreiras. Só 10% das 20 mil proteínas que o corpo fabrica a partir do genoma foram identificadas como alvos de medicamentos.

Há ainda um problema de equidade: entre os genomas acessíveis, a diversidade é baixíssima. Menos de 5% das sequências provêm de pessoas com ancestralidade africana. Ou seja, os resultados colhidos podem limitar-se a beneficiar os mais ricos e brancos.

Resta muito caminho por percorrer. Na mesma Nature, há poucos dias, Albert-László Barabási anotou com humildade:

“Um levantamento acurado dos componentes é necessário —mas não suficiente— para entender qualquer sistema. A complexidade emerge da diversidade das interações entre componentes. Após 20 anos de pesquisa construída sobre o PGH, biólogos agora têm um vislumbre da dinâmica e da estrutura da rede que define a vida.”​

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