Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Estamos todos presos no tumbeiro chamado Brasil

Num país construído com sangue africano, vacinar-se é mais um privilégio cruel

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Recebi a vacina Ad26.COV2.S, da Janssen, no dia em que completou um ano da morte da primeira vítima da Covid no Brasil, a faxineira Rosana Urbano, 57. Depois dela, uns 275 mil brasileiros morreram, e muitos ainda morrerão.

O sentimento após vacinado não é de alívio, nem de júbilo. Seguimos todos confinados no tumbeiro chamado Brasil, que tem por empresário traficador de almas Jair Bolsonaro e por timoneiro um general desfibrado, Eduardo Pazuello.

À nossa volta, os mais vulneráveis e desassistidos continuam morrendo como moscas, para indiferença da tripulação da nave e seu capitão. Fica evidente que Bolsonaro não alterará a rota nem se alcançar a mortalidade de africanos escravizados nos navios do tráfico transatlântico, estimada em pelo menos 10%.

Mudaria o Brasil, se chegasse a tanto? Haveria um motim a bordo? Dá calafrios pensar que talvez não, que reeditará a tradição do país que nasceu, cresceu e sobrevive, sem reagir, na base de sofrimento ameríndio e afro-americano.

Perceber-se incluído entre menos de 2% de brasileiros plenamente vacinados, os que receberam as duas doses de Coronavac ou CoviShield, só acentua a certeza do privilégio habitual. Trabalhar em casa, no refúgio de praia ou montanha, ser capaz de manter a mesma renda, não ter de entrar nos tumbeiros do BRT carioca etc.

Foi sorte ser recrutado para o teste clínico de uma vacina que, por muitos meses ainda, só vai beneficiar americanos. A Janssen, subsidiária da farmacêutica Johnson & Johnson, não prima pela transparência no Brasil, como assinalado em reportagem recente, mas o governo federal diz que negocia com ela a compra de milhões de doses.

Seria ótimo se conseguisse. A vacina da Janssen cairia como uma dádiva por aqui, pois tem boa eficácia (66%), requer a refrigeração usual (à diferença do produto da Pfizer e da Moderna) e permite dose única (enquanto as da Fiocruz e do Butantan exigem duas doses).

O retrospecto das cincadas de Bolsonaro e Pazuello nessa área não autoriza otimismo. Depois de tanta sabotagem e negacionismo, tantas idas e vindas sobre estoques garantidos, nem mesmo o anúncio de 10 milhões de doses da Sputnik V até junho merece crédito —e bastaria só para 5 milhões de pessoas.

O governo dos EUA comprou antecipadamente 100 milhões da vacina da Janssen, para entrega até junho, e anunciou a aquisição de mais 100 milhões. As duas levas serão suficientes para mais da metade da população de 330 milhões num país que já vacinou mais de 64 milhões.

Até uma semana atrás, só 3,9 milhões de unidades da Ad26.COV2.S haviam de fato deixado os armazéns da J&J, e outros 16 milhões de doses serão distribuídas lá até o final de março. Parece improvável que a Janssen consiga assumir compromissos adicionais para entrega antes do final do ano.

O presidente americano, Joe Biden, parece o maior estadista da Terra em comparação com Donald Trump. Cultiva a imagem dizendo que ninguém estará seguro diante da Covid até que todos os habitantes do planeta estejam, mas não abre mão das doses entesouradas de imunizantes.

Se não o faz em favor de países pobres, por que doaria vacinas para uma nação como o Brasil, entregue a um presidente pária que tinha meios financeiros para comprá-las e não o fez porque não quis?

Não conte com compaixão e decência vindas de fora ou do Planalto. Se depender delas, o tumbeiro seguirá lançando cadáveres ao mar, para desespero de quem está preso no porão e na fedentina.

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