Quando o governador João Doria (PSDB) inaugurou a vacinação contra Covid em 17 de janeiro, pareceu uma vitória retumbante. Sete meses depois, com quase todos os paulistas adultos imunizados, fica evidente que Jair Bolsonaro, ele sim, ganhou a guerra.
O presidente escapou de ser derrotado pela pandemia em dois fronts. No de São Paulo, sua campanha a favor do vírus impôs a reabertura das atividades antes da hora. No outro, em Brasília, conseguiu cobrir de fumaça as revoltantes revelações da CPI sobre negociatas e prevaricação na compra de vacinas.
Doria sempre afirma que a suspensão progressiva das restrições se baseia em critérios técnicos, respeito à ciência e recomendações de especialistas. A imunização coletiva, em sua lógica, autorizaria a retomada. Acredita quem quiser.
Em primeiro lugar, não tem cabimento falar em imunidade populacional. Até sexta-feira (13), é verdade, 88,2% dos adultos paulistas tinham recebido uma primeira dose, número não desprezível. E o governo paulista promete chegar a 100% nesta segunda (16).
Por outro lado, só 26,9% da população geral do estado estavam então com a proteção completa contra o vírus Sars-CoV-2. O coronavírus ainda encontra amplo espaço para se multiplicar e sofrer mutações que possam adaptá-lo melhor à população humana.
Em segundo lugar, epidemiologistas não comprometidos com o governador sempre consideraram um erro administrar a Covid de olho nas cifras de internação e ocupação de leitos de UTI. Tais indicadores estão em queda, assim como casos e óbitos, mas já houve outros recuos e novas ondas antes; o que importa é a transmissão.
A delta, uma das variantes surgidas com a circulação continuada do vírus, apareceu na Índia e hoje responde por 90% dos novos diagnósticos de Covid no mundo. Sua capacidade de contágio é duas vezes maior que no início da pandemia, há indícios de que possa ser mais letal, e ela mal começou a se espalhar pelo Brasil.
Mesmo diante disso, Doria anunciou com três semanas de antecedência que a vida voltaria ao normal na quarta-feira (18). Não haverá mais limites de horário nem lotação em bares, restaurantes e lojas; focos de aglomeração como pistas de dança continuam banidos.
Formaturas, casamentos e festas retornam, botecos se encherão mais do que já enchiam, ônibus e trens seguirão apinhados como sempre. O governador mantém, claro, a recomendação de usar máscaras, mas quem acredita que terá meios de impor o cumprimento da medida?
Após 17 meses de Covid no Brasil, quase 600 mil mortes e negocionismo galopante no Planalto, ninguém aguentava mais as restrições. A população se rendeu diante do corona, como Bolsonaro sempre prescreveu, e como ela capitulou Doria.
É só por contraste com o morticínio presidencial que o governador pôde posar como paladino da ciência, embora precipitando-se em sucessivos relaxamentos, avesso ao princípio da precaução. Nenhum administrador com mais de 142 mil mortos em seu turno pode cantar vitória sobre a Covid.
Nem Doria, nem muito menos Bolsonaro. O presidente, com mais de 567 mil óbitos no prontuário, obviamente causou malefício bem maior, até porque sabotou quanto pôde o que de certo rivais políticos tentavam fazer.
Só militares, empresários, parlamentares, policiais, ruralistas, pastores, muitos médicos e outras espécies de escroques ainda lhe dão apoio, sem importar-se com a montanha de cadáveres. É nesse sentido que Bolsonaro venceu: logrou tornar-nos indiferentes ao odor nauseabundo de morte que espalhou pelo país.
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