Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Descrição de chapéu mudança climática

É demasiado humano acostumar-se até com Bolsonaro

Tomar passado recente como base de comparação favorece pandemia e barbárie

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Estamos de volta à média móvel de meio milhar de mortos diários por Covid. É possível que logo ressurja a cifra macabra de mil cadáveres por dia que ainda escandalizava o país seis meses atrás. Quantos ainda se chocam, porém?

Não é tanto assim, alguém poderia ponderar, afinal eram 3.000 mortos por dia em abril passado. A ômicron provoca uma doença mais "leve" (não é bem isso). Agora temos mais vacinas e menos internações. Ninguém aguenta mais essa pandemia.

Tudo isso é verdade, em termos. Dependendo da interpretação que se atribua a tais fatos e números, a atitude das pessoas e autoridades pode variar em sentidos capazes de agravar ou arrefecer a progressão da pandemia.

Familiares durante enterro
Familiares durante enterro de três vítimas suspeitas da Covid-19, no Cemitério Parque Tarumã, em Manaus (AM) - 15.abr.2020 - Edmar Barros/Folhapress


A onda atual de infecções decorre da percepção de que a Covid estava sob controle no final de 2021. Natal e Ano Novo foram uma festa só. Todo mundo viajou para a Bahia, contaminando a si próprios e aos outros. Agora o Carnaval vem aí.

Não passa dia sem notícia de que alguém se infectou. Aqui mesmo em casa e na família o bicho pegou. A ômicron parece matar menos, mas, atingindo milhões, ceifará dezenas de milhares de vidas que poderiam ser salvas.

Por que tanta imprudência, então? Simples: seres humanos se acostumam a tudo. Diante da repetição de desgraças, a norma é esquecer progressivamente o tempo em que elas eram incomuns.

Na literatura sobre desastres ambientais, o fenômeno leva o nome de "síndrome das linhas de base móveis" (minha tradução para "shifting baselines syndrome"). Topei com o conceito num texto de David Roberts para a Vox, velho de mais de um ano, mas nem por isso menos valioso.

O exemplo clássico vem de recursos pesqueiros. Uma população de peixes superexplorada diminui no correr dos anos, limitando a captura de modo proporcional. Cada geração de pescadores toma a quantidade disponível no seu tempo como linha de base e não se dá conta do esgotamento em curso.

Com as mudanças climáticas em andamento ocorre algo semelhante na percepção das pessoas. Quem se dá conta de que verões extremamente quentes, como o atual, são 200 vezes mais prováveis hoje do que 50 anos atrás? Ninguém, diz Roberts.

A linha de base na cabeça de cada um, em matéria de meteorologia, toma por referência o que se viveu entre 2 e 8 anos antes, indicam estudos. Ora, os últimos 8 anos foram os 8 mais quentes já registrados desde 1880. Virou o novo normal.

Diante disso, fica difícil motivar as pessoas, inclusive as que conduzem as negociações internacionais sobre clima, a tomar as drásticas decisões necessárias para evitar mais catástrofes. Quando todos caírem na real, será tarde demais.

Climatologistas projetam que seria preciso cortar pela metade o consumo de combustíveis fósseis nos próximos oito anos e zerá-lo até 2050. Sem isso, países insulares serão varridos do mapa, ocorrerão mais incêndios como os do Pantanal e secas como a do Sul e enchentes trágicas como as da Bahia e de Minas Gerais...

Acredite quem quiser que seremos capazes de contornar esse megaproblema. Não conseguimos nem nos comportar diante da pandemia, contrabalançando com a fria sobriedade dos números nossa tendência psicológica natural a tudo relevar.

Aceitamos, sem esboçar reação, até as novas linhas de base da indecência ditadas pelos desmandos de Bolsonaros, Queirogas, Ciros, Guedes, Damares e caterva. Gente que sonega vacina para criança, diacho.

Pode até ser humano prostrar-se em face da barbárie, acostumar-se com o pior, como acontece em guerras cruentas e na fome abjeta. Não é o caso do Brasil —ainda.

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