Andamos tão distraídos, sob o peso da tragédia brasileira, que passou sem a devida atenção esta notícia: um coração de porco foi implantado no peito de um homem, nos EUA. O transplante ocorreu em 7 de janeiro, e o anúncio, três dias depois.
A façanha teve lugar no Centro Médico da Universidade de Maryland. David Bennett Sr., 57, passava bem após receber um órgão suíno com genes deletados ou incluídos para diminuir o risco de rejeição pelo organismo receptor.
O paciente consentiu com a operação porque estava para morrer de insuficiência cardíaca e não se qualificava para receber um coração humano. Entre outras razões, por estar doente demais e não seguir recomendações médicas vitais.
Noutros tempos, a notícia teria desencadeado tempestades de questionamentos éticos. Num país em que o elogio da tortura, do estupro e de assassinatos políticos elegeu um presidente que sonega vacinas para crianças, passou batido.
Por bem menos –um rim porcino ligado a mulher com morte cerebral– esta coluna, há três meses, falava em "nova era da medicina" e "revolução dos xenotransplantes". O título impresso era parecido, "Sobre rins e espíritos de porcos".
Há alguns pedregulhos éticos no caminho dos transplantes de órgãos suínos transgênicos, porém. Convém começar pelas boas razões para fazê-los: faltam doadores, aqui e alhures, e muita gente morre na lista de espera.
Há mais de 50 mil brasileiros na fila por órgãos. Em 2020, ingressaram nela 27.579 pessoas, e 2.765 morreram sem recebê-los (56 óbitos infantis, mas este número será considerado pequeno no primeiro escalão de Brasília).
No caso de transplantes de coração, estima-se que seriam necessárias 1.681 cirurgias por ano. No primeiro ano da pandemia, realizaram-se 307, redução de 17% sobre 2019. Pesquisar alternativas suínas se justifica, assim, por razões humanitárias.
Argumenta-se, em contrário, que é muito alto o risco para o paciente. Ora, Bennett Sr. estava desenganado e consentiu com o experimento. Disse que já tinha uma válvula de porco no coração (ninguém se espanta mais com isso), alegou que queria viver e ainda fez piada, perguntando se começaria a grunhir.
Seu caso equivale a uma prova de princípio, mas não há como seguir adiante sem ela. Para futuros pacientes, claro, o risco terá de ser muito reduzido, com mais testes de laboratório para comprovar que a alteração genética é segura o bastante.
Segura para pacientes humanos, não para os porcos doadores sacrificados, objetam defensores de animais. Eles consideram que mesmo a manipulação de genes constitui violação dos direitos desses seres inteligentes à dignidade e à vida.
A ponderação é razoável. Mas o argumento empalidece diante de 3,5 milhões de porcos mortos a cada dia só para sua carne saborosa alimentar os humanos.
Mais espinhosa se mostra a revelação de que Bennett Sr. esfaqueara Edward Shumaker em 1988, confinando-o a uma cadeira de rodas. Condenado, cumpriu 6 dos 10 anos da pena e viveu a vida de doente relapso pelos 27 anos seguintes, enquanto sua vítima morria cheio de escaras em 2007.
Familiares de Shumaker disseram ao jornal The Washington Post que prefeririam ver o transplante beneficiando alguém mais merecedor. Como diz o colega Hélio Schwartsman, no entanto, médicos não são juízes da conduta de seus pacientes; sua obrigação é tratar todas as pessoas e salvar vidas.
No caso de Bennett Sr., só um coração de porco poderia fazer isso. No caso do Brasil, só precisamos livrar-nos dos espíritos de porco (com perdão desses nobres animais pelo termo bioeticamente incorreto).
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