A correspondente Sylvia Colombo, de Buenos Aires (ARG), brindou leitores da Folha com a informação poética: Gabriel Boric, 36, novo presidente do Chile, está morando numa casa da rua Huérfanos, entre Libertad e Esperanza. Me fez pensar no Brasil.
Jair Bolsonaro, 66, largará a Presidência da República aos 67 (ou não). Deixa centenas de milhares de órfãos da Covid-19, a liberdade ameaçada pela sombra militar, policial e miliciana sobre as eleições e a esperança garroteada por pecuaristas do centrão votando em manada para passar a boiada de Salles.
Enquanto Arthur Lira (PP-AL) destampava na Câmara sua urgência para o projeto de lei 191, com o propósito de estuprar terras indígenas sob o pretexto vil da guerra na Ucrânia, milhares tomavam a Esplanada para caetanear. Inebriados com a liberdade pós-pandemia e com a esperança de estancar o descalabro ambiental.
Não são poucos. De acordo com a pesquisa de opinião Mudanças Climáticas na Percepção dos Brasileiros: 96% dos brasileiros declaram acreditar que o aquecimento global é fato, e 77% o atribuem à ação humana.
Nem para vacinação contra Covid se encontra apoio tão dominante numa questão de sobrevivência. E olhe que o coronavírus tem sido ameaça presente e disseminada, enquanto a crise do clima ainda é percebida como perigo futuro, que se pode combater e mitigar —na pior hipótese, preparar-se para o impacto.
Nem sempre a unanimidade se funda em noções corretas e objetivas. Não faltam evidências de que a adesão superficial a causas populares é tão rápida e fácil quanto manipulável e inconsequente —a mitologia sanguinária do heroísmo ucraniano está aí para ninguém espalhar fake news sozinho.
Exibir bandeirinhas azuis e amarelas na lapela ou no vidro do carro custa tanto quanto fazer o mesmo com as verdes e amarelas. Bem menos que entrar na fila de SUVs para abastecer com gasolina em alta disparada e odiar Vladimir Putin por encarecer combustível fóssil que já tem seus dias contados.
Vamos todos pagar cada vez mais caro por insistir na dependência de hidrocarbonetos formados milhões de anos atrás. Todos se preocupam com a saúde da Petrobras por causa da interferência nos preços, hoje, mas com o encalhe líquido e certo do patrimônio do pré-sal, amanhã, ninguém parece se importar.
Só para lembrar: a fim de estancar em 1,5º C o aquecimento global no qual todos virtualmente acreditam, como estipula o Acordo de Paris (2015), há que cortar quase pela metade a emissão de carbono em menos de uma década. E zerá-la nos 20 anos seguintes. Tchau, gasolina!
Atire o primeiro coquetel molotov quem acreditar que isso possa acontecer, com ou sem Putin e Zelenski. Do ponto de vista da atmosfera e do efeito estufa, tanto faz se o gás natural russo fluir para a Europa Ocidental ou para a China.
Do ângulo do futuro, tampouco importa se 25% ou 30% dos brasileiros puserem Bolsonaro no segundo turno por medo de Lula, da ideologia de gênero ou do espantalho da corrupção. A maioria deles diz acreditar em aquecimento global e que se trata de obra hu mana, mas não liga uma coisa com a outra.
Vibrei com a multidão que foi ao showmício na frente do Congresso, quarta-feira (9). Estranhei a retórica gritada nos discursos iniciais de lideranças progressistas, verdade, mas relevei ao racionalizar que deve ser porque todos nos sentimos órfãos, nesta altura, de liberdade e esperança.
Berrar, então. Quem sabe alguém escuta.
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