Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Descrição de chapéu yanomami

Genocídio yanomami é obra coletiva do Brasil

É inescapável incriminar Bolsonaro, mas matança não começou há quatro anos

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Meia dúzia de meninas yanomamis entra na fila da comida em Toototobi (RR), com outras seis centenas de parentes reunidos na assembleia da associação Hutukara. Têm algo como 10 ou 12 anos de idade, corpos colados um ao outro num quase abraço, algumas com bochechas e narizes perfurados por palitos.

São magras, membros longos e delgados, mas não se veem costelas sob a pele —"esbeltas" seria uma descrição melhor. Retrato acabado de beleza, saúde e afeto natural. Aguardam a distribuição dos 110 kg de arroz e 20 kg de feijão preparados a cada dia na cozinha comandada com mão de ferro por Davi Kopenawa.

Crianças yanomamis internada com desnutrição grave no Hospital da Criança Santo Antonio, em Boa Vista - Lalo de Almeida - 25.jan.2023/Folhapress

A reportagem nesta Folha, em novembro de 2010, culminava a realização de um desejo: conhecer o povo imortalizado nas fotos de Claudia Andujar e no livro "O Círculo dos Fogos", de Jacques Lizot. Uma semana de imersão na política yanomami debatida em cinco línguas por comitivas de várias aldeias, até da Venezuela.

A lembrança das garotas enfileiradas contrasta em tudo com as fotos de Lalo de Almeida mostrando crianças yanomamis esquálidas na edição de quinta-feira (26) do jornal. Quanta tristeza: concretizava-se em instantâneos repulsivos a estatística de 52% de meninas e meninos da etnia com menos de 5 anos sofrendo de desnutrição.

Imagens fortes o bastante, espera-se, para calar a boca de quem, diante da tela a 3.000 km de distância, objeta ociosamente contra o termo "genocídio" e a respectiva tipificação penal. Como se essa fosse a questão mais importante.

O vagalhão de revolta com a situação se levantara em 20 de janeiro, quando a revista Sumaúma revelou que 570 curumins yanomamis tinham morrido por causas evitáveis nos quatro anos de Bolsonaro. As fotos que acompanhavam a reportagem, ao que parece feitas com celulares, já eram para lá de chocantes.

O paralelo imediato, para quem viveu o século 20, estava nos retratos de crianças famintas de Biafra, no final dos anos 1960. Ou dos campos de concentração de judeus na Segunda Guerra. O horror, o horror.

No dia seguinte o Ministério da Saúde declarou emergência de saúde pública na área. O presidente Lula foi a Roraima testemunhar a tragédia. Um surto de cobertura jornalística assomou para exibir o que era uma realidade crônica.

A infâmia só fez crescer com a reação da falange genocida no comando de metade do país até dezembro passado. Não seriam yanomamis brasileiros, mas sim venezuelanos, supostas vítimas de Maduro —disseram os que sempre agiram pela extinção de uns e outros, em prol do garimpo ou sonegando e desviando remédios.

Bolsonaro e caterva representam só o paroxismo da índole dominante no Brasil. Não por acaso a primeira condenação por genocídio, aqui, se deu no julgamento de outra matança de yanomamis, a de Haximu, ocorrida em 1993.

O subestimado Itamar Franco era presidente, então. Por ironia, a Terra Indígena Yanomami (quase 97 mil km²) havia sido homologada em 1992 por ninguém menos que o famigerado Fernando Collor.

A saúde dos yanomamis seguiu com altos e baixos sob Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma e Temer, até desembocar na hecatombe bolsonarista. Nos quatro anos do capitão, informa a reportagem da Sumaúma, aumentaram 29% as mortes de suas crianças, para 570 (e ele deve ser responsabilizado por esse crime).

Isso quer dizer que, no quadriênio anterior a Bolsonaro, morreram aí uns 442 curumins nas terras assediadas pelo garimpo contaminador. Uma investida corrosiva que o Estado brasileiro nunca conseguiu controlar, no máximo fustigar com operações midiáticas.

O genocídio começou muito antes. É coisa nossa.

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