Marcelo Viana

Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.

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Marcelo Viana

Poincaré e Oscar 2º, o rei que amava a matemática

Crédito: Fernando Moraes/Folhapress O rei Oscar II da Suécia e Noruega criou a revista científica "Acta Mathematica"
O rei Oscar II da Suécia e Noruega criou a revista científica "Acta Mathematica"

O 60º aniversário do rei Oscar 2º da Suécia e Noruega foi em 21 de janeiro de 1889, mas os preparativos começaram muito antes. Oscar 2º (1829-1907) não era um monarca comum: estudara matemática na faculdade e tornou-se protetor dessa ciência, chegando a patrocinar a criação de uma revista científica, a "Acta Mathematica", que até hoje é uma das mais prestigiosas do mundo.

Entre os seus conselheiros estava o matemático Gösta Mittag-Leffler (1846-1927), elegante, culto, bon-vivant, que se casou com uma das herdeiras mais ricas da Suécia e gastou alegremente o dinheiro do sogro. Portanto, que o rei tenha decidido assinalar o aniversário por meio de um prêmio matemático não chega a ser surpresa. Embora seja inusitado, infelizmente.

A premiação, uma medalha de ouro e 2.500 coroas suecas (cerca de 4 meses de salário de um professor universitário), iria para a melhor solução de uma questão de pesquisa em análise matemática. Além disso, o trabalho seria publicado na "Acta Mathematica".

Mittag-Leffler ficou encarregado de presidir o júri e não perdeu tempo para transformar a situação em uma oportunidade de autopromoção.

Inicialmente, o júri seria formado por cinco matemáticos: um sueco (Mittag-Leffler), um francês ou belga, um alemão ou austríaco, um inglês ou americano e um russo ou italiano. Essa distribuição diz muito sobre a geopolítica da matemática na época.

Mas as dificuldades de comunicação –distâncias, idiomas, ciúmes– tornaram o plano inviável, e Mittag-Leffler teve que se contentar com um júri menor: além dele, estavam o francês Charles Hermite (1822-1901) e o alemão Karl Weierstrass (1815-1897), dois dos maiores matemáticos do século 19.

A competição foi anunciada na "Acta Mathematica" em 1885, e as dificuldades começaram imediatamente. O alemão Leopold Kronecker (1823-1891), adversário de Weierstrass, ofendido por ter sido preterido, criou todo tipo de controvérsias.

Mittag-Leffler tentou acalmá-lo, explicando que Weierstrass tinha sido escolhido por ser mais velho. Não sabemos se ele deu a mesma explicação a Weierstrass...

O regulamento dizia que cada trabalho apresentado deveria estar identificado apenas por meio de uma frase em latim, sendo acompanhado por um envelope fechado contendo a frase e o nome do autor. Claro que, como os trabalhos eram manuscritos, o anonimato era relativo. O júri reconheceu imediatamente o trabalho do francês Henri Poincaré: além de ter um estilo inconfundível, Poincaré não leu o regulamento direito e identificou o trabalho com o próprio nome!

Bons matemáticos podem ser pessoas distraídas...

O trabalho de Poincaré tratava das equações que descrevem o movimento dos planetas, cometas e demais corpos celestes sujeitos à gravitação. Embora não resolvesse o problema, ele continha avanços extraordinários, que revolucionaram essa área da matemática e da física. Assim, foi fácil para o júri chegar à decisão unânime de que deveria ser o vencedor.

Crédito: Divulgação Henri Poincaré
Figurinha de Henri Poincaré

No dia 20 de janeiro de 1889, véspera do aniversário, Mittag-Leffler foi ao palácio levar ao rei a boa-nova. O pior estava por vir...

O astrônomo sueco Hugo Gyldén (1841-1896) afirmou que ele mesmo já tinha feito a maior parte do trabalho de Poincaré. Na verdade, tratava-se de contribuições muito diferentes: Gyldén era um bom astrônomo, mas os seus trabalhos não tinham rigor matemático. Só que a comunidade científica sueca ficou do lado dele, deixando Mittag-Leffler na posição desconfortável de defender, sozinho, a decisão do júri.

No meio-tempo, o jovem matemático sueco Edvard Phragmén (1863-1937) penava para revisar o difícil trabalho de Poincaré para publicação. O autor respondia solicitamente a seus pedidos de explicação –embora por vezes a resposta fosse do tipo "É assim mesmo."– o que fez o artigo crescer muito: a versão final tem 270 páginas!

Então veio a bomba: na sequência de perguntas de Phragmén, Poincaré descobriu um erro grave, que jogava no lixo boa parte do trabalho. Para o vaidoso Mittag-Leffler, que apostara a sua reputação nesse prêmio, era uma catástrofe! Só havia uma coisa a fazer: disse a Poincaré para manter segredo e recolheu todas as cópias do artigo que já haviam sido distribuídas. Restou uma na biblioteca do Instituto Mittag-Leffler, em Estocolmo, que folheei anos atrás. Uma anotação manuscrita em sueco informa: "edição completa destruída".

Poincaré ficou muito perturbado: "Não vou esconder a angústia que isto causou em mim. Para começar, não sei se ainda acho que os resultados que sobraram [...] merecem esta grande distinção", escreveu a Mittag-Leffler. E quando o sueco informou que teria que pagar pela reimpressão da revista, aceitou sem hesitar: 3.500 coroas, muito mais que o valor do prêmio!

O artigo corrigido saiu, finalmente, na "Acta Mathematica" de abril de 1890. Anos depois, Poincaré publicou uma versão estendida, na forma de um livro em três volumes intitulado "Os métodos novos da mecânica celeste", que deu origem a uma nova área da matemática: sistemas dinâmicos, ou "teoria do caos". O seu famoso erro o levou a descobrir o conceito de "trajetória homoclínica", que ocupa uma posição-chave nessa teoria.

Apesar de todas as dificuldades, o prêmio foi um sucesso espetacular. A matemática ficou mais rica, e a "Acta Mathematica" mais conhecida. E, não fosse pelo erro de Poincaré, provavelmente o aniversário do rei Oscar 2º já teria sido esquecido.

Aos leitores que desejam saber mais, recomendo o excelente artigo "Oscar II's prize competition and the error in Poincaré's memoir on the three body problem", da pesquisadora June Barrow-Green.

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