Marcelo Viana

Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.

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Marcelo Viana
Descrição de chapéu educação matemática

Documentos de identidade em Portugal foram emitidos com erros matemáticos

As discrepâncias estão associadas ao dígito verificador, usado para conferir os demais dígitos 

Quase todos os números que usamos no dia a dia (RG, CPF, contas bancárias, cartões de crédito, boletos, códigos de barras etc) vêm com um misterioso “dígito verificador”. Verificador do quê?

O meu amigo Jorge Buescu, professor da Universidade de Lisboa e atual presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, conta em um de seus artigos que esse questionamento era comum em Portugal anos atrás (talvez ainda seja), a respeito do número do bilhete de identidade —que é como chamam a carteira de identidade lá.

Pessoa plastifica carteiras de identidade (RG). Na frente do homem, está uma fileira de RGs, os quais estão sendo plastificados.
Pessoa plastifica carteiras de identidade (RG) - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

Entre outras lendas urbanas, dizia-se que o misterioso dígito serviria para distinguir homônimos. 

Se o seu dígito fosse 6, por exemplo, isso significaria que cinco pessoas com exatamente o mesmo nome haviam sido registradas antes. Jorge sabia que isso não tinha pé nem cabeça. No caso dele, o dígito era 9 e ele tem certeza que ninguém mais no mundo inteiro se chama Jorge Buescu!

Na verdade, o dígito verificador serve apenas para conferir se os demais dígitos foram escritos corretamente.

O problema é que o ser humano não é muito bom em decorar números com muitos dígitos e reproduzi-los corretamente. Dá para entender por quê.

Esse talento não era muito útil aos nossos antepassados das cavernas, cuja maior preocupação era encontrar comida e não virar refeição de predador. Também não creio que ajudasse muito a arrumar namorado(a) —trogloditas bons de dígitos provavelmente não deixaram descendentes...

Mas hoje em dia dependemos cada vez mais de números para nossas atividades. Por isso precisamos de ferramentas capazes de verificar, a cada vez que informamos um número (de documento, conta bancária etc), se ele está correto.

Vou usar um exemplo para explicar como o dígito verificador faz isso.

No estado de São Paulo o número do RG tem oito dígitos. Por exemplo 130.21.473.

Dê pesos de 9 até 2 a esses dígitos e some: 9x1+8x3+7x0+6x2+5x1+4x4+3x7+2x3 = 93.

Agora divida o resultado por 11 e calcule o resto.

Neste caso, 93 dividido por 11 dá 8 com resto 5.

Então o dígito verificador é 5, e o número completo do documento é 130.21.473-5.

Os erros mais comuns quando escrevemos um número são a troca (errar o valor de um dígito) e a permuta (mudar a ordem de dois dígitos consecutivos). O dígito verificador é muito bom para detectar tais erros.

Por exemplo, se escrever 130.27.473-5 vai dar erro porque para 130.27.473 o dígito verificador seria 2 e não 5 (confira!).

Do mesmo modo, se escrever 130.12.473-5 dá erro porque neste caso o dígito verificador seria 4.

Por que dividir por 11? Por 10 seria mais fácil, já que nesse caso o resto da divisão seria simplesmente o último dígito da soma.

A razão é matemática. Embora possa ser usado qualquer número (por exemplo, o método do RG no Rio de Janeiro é baseado no 10), com primos o método é mais eficaz para detectar erros do modo que descrevi. E 11 é o número primo mais próximo de 10.

Mas usar a divisão por 11 traz um probleminha. Pode acontecer que o resto da divisão dê 10, o qual não é realmente um dígito. A saída é inventar um “dígito especial” para representar 10: a escolha recaiu na letra X (dez em numeração romana) e é por isso que essa letra aparece com frequência em números de contas bancárias, por exemplo.

Jorge Buescu também conta um incidente que ocorreu com os números dos bilhetes de identidade alguns anos atrás. Algum responsável do governo português, “na sua reconfortante ignorância matemática sobre códigos, teve a brilhante ideia de substituir o dígito verificador X, quando ocorresse, pelo dígito 0”.

Vai ver, deve ter achado que o X ficava feio...

O resultado é que mais de 9% dos bilhetes de identidade vinham errados, com números inválidos por causa do dígito verificador. Os matemáticos chegaram a escrever ao governo, explicando o erro e a solução, mas nunca obtiveram resposta (tenho que lembrar de perguntar ao Jorge se o erro já foi consertado).

"E o CPF?", pergunta o leitor. 

É parecido, mas mais complicado, porque o CPF tem dois dígitos verificadores. Cada um é calculado por um método semelhante ao que apresentei, sendo que o primeiro dígito é usado no cálculo do segundo. Para saber mais, busque “dígito verificador do CPF” na internet. Há diversos sites que explicam bem.

Tudo isso me deu vontade de inventar um novo tipo de número, que vou chamar modestamente “número MV”.

Aqui estão alguns exemplos: 6204-1, 2604-5, 2064-4, 2046-6, 2056-4, 2656-0 e 5656-2.

Como é calculado o dígito verificador do número MV? Respostas são bem vindas pelo e-mail vianafolhasp@gmail.com.

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