Por motivos que desprezam a razão, alguns filmes e músicas acabam se tornando inevitáveis. Nos EUA, por exemplo, "A Felicidade Não se Compra", de Frank Capra, não teve sucesso inicialmente, mas, com o tempo, passou a ser tão obrigatório quanto a árvore de Natal no fim de ano. Nem de longe é o melhor de Capra. Basta comparar com a sua desbragada comédia "Esse Mundo é um Hospício".
A Nona Sinfonia de Beethoven tem momentos sublimes. O último movimento, porém, virou lugar-comum. A sua grandiosidade romântica casa bem com o poema de Schiller cantado pelo coro, um texto triunfalista que parece temperado pelo movimento hippie.
O tema se tornou arroz de festa em eventos grandiosos. As inovações de Beethoven podem ser arrebatadoras, como nas últimas sonatas. Mas é melhor apreciar a "Nona" sem compreender o poema de Schiller.
Nestes tempos, contudo, não cabem os velhos clichês, como filmes recheados com milagres ou músicas triunfais.
O presidente pede exame de raios-X para comprovar os atos de tortura contra Dilma Rousseff. Trata-se do presidente que faz gols no futebol com o mesmo talento peculiar exibido ao cuidar da pandemia. O patético, por vezes, torna-se trágico.
A curva de mortos pelo vírus voltou a aumentar em meio ao despreparo do Ministério da Saúde, que se atrapalha até para comprar seringas.
O Supremo recorrentemente apoia que os estados descumpram seus contratos com a União, além de convalidar a remuneração de servidores bem acima do teto constitucional.
As manchetes com frequência tratam das reformas tributária e fiscal. Líderes do setor privado criticam a morosidade na condução dessa agenda. Ao mesmo tempo, insurgem-se contra as medidas quando descobrem que seus próprios benefícios serão reduzidos.
Invariavelmente, há quem defenda elevar gastos públicos para ampliar investimentos e programas sociais. O desfecho usual, porém, são reajustes para servidores, como ocorreu recentemente na Prefeitura de São Paulo. O "fura-teto" acaba sendo massa de manobra das demandas das corporações.
O eterno retorno parece ser o nosso clichê.
Temos um governo pouco ciente dos desafios da gestão pública. Esse quadro é agravado pela agenda patrimonialista dos grupos organizados, sempre na defesa dos seus pequenos privilégios. O resultado é a paralisia no enfrentamento dos graves problemas.
Crises ocorrem nas democracias e nos regimes autoritários. Com a diferença de que em uma há liberdade para a crítica e para a arte. Quem sabe, com diálogo e ciência, 2021 permita aglutinar aqueles que acham que a Venezuela não é uma democracia e que o golpe de 1964 não merece ser celebrado.
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