Está se popularizando a tese de que, em época de crise, o governo pode “emitir dinheiro” e aumentar seus gastos, sem gerar efeitos negativos. Os efeitos colaterais seriam, na verdade, positivos: quanto mais gastar, mais impulso o governo dará à recuperação da economia.
Como entender a ideia de “emitir dinheiro” para pagar gastos públicos? Dívida pública e moeda são obrigações do Estado. A diferença entre elas é que a moeda não paga juros. Uma forma de tentar equiparar a dívida pública à moeda seria fixar em zero o juro pago pela dívida.
O processo de monetização se daria, então, pelo Banco Central estabelecendo uma taxa Selic igual zero e se colocando à disposição do Tesouro para comprar quantos títulos este emitisse.
Note-se que não se trata de uma discussão sobre se o Banco Central deve ser mais agressivo ou conservador na definição dos juros.
Propor monetização da dívida é sugerir uma mudança de regime monetário: o Banco Central deixaria de lado a busca de uma meta de inflação e se colocaria à disposição do Tesouro para comprar quantos títulos for necessário para que o Governo execute o seu novo e ampliado programa de gastos. A base monetária se expandirá pelo período e na intensidade necessários a esse financiamento, com a taxa Selic em zero.
É aproximadamente isso que Estados Unidos, Japão e Reino Unido têm feito. Quais as consequências de o Brasil seguir nessa linha?
Ao contrário desses países, nossa moeda não tem aceitação internacional, e nosso histórico de instabilidade nos faz um local mais arriscado para investir. Há um prêmio de risco a ser pago para manter o interesse dos poupadores em financiar a dívida pública brasileira.
Com a Selic igual a zero, os brasileiros e estrangeiros que compram títulos públicos vão perceber que é indiferente deixar o dinheiro no Brasil, nos EUA ou no Reino Unido. Melhor aplicar fora, fugindo do risco Brasil.
Haverá saída de capital e desvalorização do real, cuja intensidade dependerá do tempo e da intensidade da monetização. O choque cambial e o aumento dos gastos públicos impactarão a inflação? Quando?Haverá tentativa do governo de conter a desvalorização do câmbio, impondo restrições à remessa de recursos ao exterior? Essas dúvidas aumentarão a incerteza quanto ao médio e longo prazo.
Mais incerteza implica juros maiores para empresas e famílias que precisam de crédito por prazo mais longo, para refinanciar uma dívida, comprar um imóvel ou ampliar a produção. A contrapartida à redução do juro de curto prazo (a taxa Selic) será o aumento do juro de longo prazo. Paradoxalmente, o afrouxamento monetário vai tornar ainda mais difícil a recuperação da economia.
Os juros estão perto de zero, nos países desenvolvidos, porque as condições de poupança, estrutura etária, produtividade, segurança jurídica, nível e qualidade de infraestrutura e capital físico levam o juro de equilíbrio para esse nível. No Brasil, todas essas condições fazem com que a demanda por crédito seja maior que a oferta, de modo que a taxa de juros de equilíbrio é positiva. Isso torna muito difícil tentar uma intervenção do Banco Central para reduzir também as taxas de longo prazo.
Uma desvalorização intensa e prolongada e a pressão do governo sobre a demanda trarão de volta a inflação. Não será hoje ou no ano que vem, mas em algum momento ela virá, mesmo com baixa inflação nas economias líderes.
Podemos chegar ao ponto de o real ser rejeitado. Teremos dolarização da economia. Todo o esforço de décadas para termos uma moeda nacional com credibilidade, adquirido ao custo de muitos anos de juros elevados, será perdido.
Sempre se pode dizer que uma monetização temporária ajudaria a resolver o problema, e depois poderíamos voltar à normalidade. A questão é que, ao se anunciar que a política fiscal pode se expandir, pois a monetização pagará tudo, haverá maior facilidade política para a aprovação de medidas com impacto permanente na despesa.
A necessidade de financiamento do Tesouro subirá em definitivo. A interrupção do regime de monetização requererá uma agenda de ajuste fiscal mais intensa que aquela necessária antes da pandemia, e que já não se estava conseguindo implementar.
A crise atual é grave. É preciso gastar mais para salvar vidas e empregos. A sociedade precisará escolher entre priorizar os gastos mais relevantes e controlar os custos para o futuro, ou aceitar toda e qualquer expansão fiscal agora, e lidar com os problemas nas próximas décadas.
Ambas são escolhas legítimas. O que não se pode fazer é vender a ilusão de que há saídas sem custo.
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