Marcos Troyjo

Diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia

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Marcos Troyjo

A guerra quente de palavras entre Rússia e Ocidente

A crise humanitária de refugiados sírios se agrava e confronta a Europa. A situação econômica russa se deteriora com sanções ocidentais e petróleo barato. Nessa moldura, a retórica confrontacionista entre Moscou e o Ocidente não para de crescer.

Nos últimos dias, tal estado de coisas contou com textos que apresentaram visões sofisticadas —e provocativas— de uma e outra perspectiva.

Semana passada, durante a Conferência de Segurança de Munique, o Primeiro-Ministro russo, Dmitri Medved, sugeriu em discurso que o estranhamento de EUA e Europa com a Rússia "faz com que estejamos nos movimentando rapidamente rumo a uma nova Guerra Fria".

Medvedev revela o sentimento russo de que hoje seu país é apresentado como maior ameaça à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Diz-se confuso com esse quadro e, numa alusão nada sutil à Crise dos Mísseis em Cuba, pergunta ironicamente: "Estamos em 2016 ou em 1962?"

Argumenta ainda que a política exterior da União Europeia, em harmonia com os interesses de EUA e Otan, visava a criar um cordão formado por países amigos (ao Ocidente) nas fronteiras europeias. Em vez disso, acabou por conformar uma zona de exclusão com conflitos locais e turbulência econômica na Europa Oriental (em países como Ucrânia e Moldova) e no Oriente Médio/Norte da África (na Líbia ou Síria).

Critica ainda os padrões duplos do Ocidente, não apenas em intervenções militares, mas em questões financeiras. Medvedev acusa o Ocidente de "flexibilizar" as regras do FMI de modo a permitir a flexibilização dos limites da ajuda a países que já acumulam grandes passivos soberanos externos, como é o caso da dívida ucraniana junto à Rússia.

Para ilustrar sua visão da gravidade deste prelúdio a uma nova Guerra Fria, Medvedev concluiu seu pronunciamento com uma citação de John Kennedy: "A política interna pode nos derrotar, mas a política externa pode nos matar".

Na outra ponta, ganhou também notoriedade no final de semana um artigo do financista George Soros, intitulado "Putin não é aliado no combate ao Estado Islâmico".

Soros critica os líderes ocidentais por inocentemente acreditarem que a Rússia de Vladimir Putin compartilha dos mesmos interesses que EUA e Europa em suas ações na Síria. As democracias ocidentais, segundo Soros, tenderiam a ser condescendentes com Putin, e seus líderes atenuariam o potencial de risco que Putin representa de modo a acalmar seus públicos internos.

Embora a Rússia também sofra com o flagelo terrorista do Estado Islâmico (basta lembrar a bomba plantada em avião civil russo que explodiu após decolar do aeroporto egípcio de Sharm el-Sheik em outubro de 2015), Soros argumenta que o principal interesse atual do Kremlin é a desintegração da UE, e sugere que a melhor maneira de fazê-lo é inundar a Europa de refugiados, o que Putin, com seus bombardeios na Síria, está contribuindo para conseguir.

Soros aponta que tanto Putin como a UE encontram-se numa corrida contra o tempo. Se a crise dos refugiados, como indicou a própria chanceler alemã Angela Merkel, pode ser o maior teste até agora à integração continental, a Rússia por seu turno pode "ir à falência em 2017".

No ano que vem, sublinha Soros, vence grande parte da dívida externa da Rússia, que hoje supostamente mantém déficit orçamentário na casa dos 7% do PIB e cuja previdência social aproxima-se da pindaíba.

O financista defende que o (ainda elevado) apoio popular russo a Putin depende de um pacto social delicado que inclui estabilidade financeira e padrões de vida crescentes —–ambos em grave risco.

Como é natural nesses embates retóricos, acumulam-se exageros.

O conflito bipolar entre EUA e URSS que se seguiu à Segunda Guerra Mundial foi objeto de uma minuciosa construção intelectual e estratégica do Ocidente para "conter" tendências expansionistas soviéticas. A Guerra Fria foi uma operação complexa. Não há nada hoje nem parecido com isso nas diplomacias ocidentais vis-à-vis Moscou.

Medvedev não deveria argumentar que o Ocidente conta com um plano bem arquitetado e em execução desde que ele e Putin começaram a alternar-se nas posições mais altas do poder russo.

No que toca à política de Washington para o Kremlin, Bill Clinton fez de tudo para empatizar-se com Boris Ieltsin (1991-99). George W. Bush, priorizando sua "Guerra ao Terror", não inseriu a Rússia no quadro de grandes dilemas estratégicos dos EUA.

Obama, com seu "pivô para a Ásia", preferiu a distância ao engajamento com Putin. Isso só mudou (em termos de distância) no momento em que a Rússia anexou a Crimeia ou quando (em termos de aproximação) ambos se encontraram às margens da reunião do G20 em novembro último na Turquia.

Soros individualiza toda a complexidade russa na figura de Putin. Extrapola talvez na ideia de que Putin trabalha em prol do desmembramento da União Europeia, quando é razoável supor que tudo que a Rússia deseja é o reconhecimento simbólico de sua grandeza e da esfera de influência em sua vizinhança a que Moscou entende fazer jus.

E Soros provavelmente subestima a habilidade dos gestores russos em remediar a situação econômica do país, sobretudo e, se considerando a grande capacidade da população russa em enfrentar adversidades.

À parte das distorções que se encontram aqui e ali em textos dessa natureza, eles são bastante reveladores das visões de mundo que protagonistas de governo e negócios projetam àquilo que há um tempo se chamava de relações "Leste-Oeste".

Tais narrativas podem, no limite, ajudar a criar as bases conceituais para uma nova fase de tensões entre Rússia, EUA e Europa.

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