Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu Ásia

A bifurcação do mundo

Pretendia escrever uma coluna menos pessoal, mas meu inconsciente me traiu

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Leio com leve espanto as notícias sobre o passaporte da vacina. Não porque eu ache que não tenha que haver uma “carteira de vacinação global”. Talvez eu seja do tipo sonhador ou lúcido o suficiente para saber que ou chegamos a acordos sobre como viver juntos e simultaneamente no mesmo espaço ou será muito desgastante e chato. Não sei se sou tão sonhadora a ponto de acreditar que grandes explorações espaciais nos tragam novos e lindos lares. Sim, é muito difícil chegar em consensos no nosso quintal, aliás na nossa cama conjugal, quiçá na cidade ou no globo. Só o fato de se iniciar essa conversa sobre vacinação coletiva, com a consciência de que somos um único povo humano nos movendo sem parar sobre a superfície terrena, talvez seja um grande avanço nessa direção.

Por que me espanto então? Pelo mesmo motivo com que me espanto com as conversas (conversas?) na CPI em que parece haver, para além de parâmetros técnicos e objetivos, impressões subjetivas –que hoje chamamos ideológicas– sobre tal ou qual vacina, de tal ou qual país. São disputas de branding, afinal, em que a carga imaginária da marca conta. A vitória do marketing revela nossa forma de vida atual: um grande jogo entre mercados reais e auras simbólicas.

Não é curioso que tenhamos palavras mágicas adjetivando vacinas? Dois exemplos: Oxford e China. Numa bolha mais ou menos letrada Oxford carrega um sinal positivo; e vírus chinês, vachina e Made in China carregam um sinal negativo. Tanto é assim que há alguns meses assistimos às disputas desse campeonato. Atualmente, os grupos de WhatsApp se apressam em ajudar os interessados: no lugar x, tem vacina y. Clube tal vacinando com Pfizer. Go! A melhor vacina: alta proteção e você ainda poderá viajar para o Mundo Ocidental Civilizado. A maioria dos experts nos diz que em alguns meses esse embate será resolvido e poderemos todos nos sentir protegidos com todas as vacinas e viajar para todos os lugares.

Mas ainda me espanto. Com outra camada dessa conversa: por que não poderíamos já ter partido de uma outra premissa e, desde o início, ter pesquisado em conjunto, todos os laboratórios e países, trocando mais rapidamente as informações e dados, e chegado em uma vacina, a mais eficaz, mais rápida de ser obtida e com uma dose? Como espécie, temos sapiência suficiente para decifrar o vírus e inventar vacinas em alguns meses. Mas, uma vez tendo diversas vacinas, com metodologias diferentes, não conseguimos deixar de associar a elas auras imaginárias, normalmente atreladas a preconceitos ancestrais ligados ao que chamamos de povos e “nações”.

Parece, então, que viver a partir da premissa do “global” ou do “comum” é muito complexo. A Terra dá muitas outras voltas ao redor do sol e eis-nos diante do desejo irresistível de encontrar um inimigo. Um outro a quem odiar ou desprezar ou temer, livremente.

Continuo a ler o jornal. Israel x Palestina. Bolsonaristas x restante. A Estação Espacial Internacional (ISS) da qual a China é excluída x a Estação Espacial Chinesa (e o medo que ela supere a ISS, ou que entremos na Guerra Fria do século 21).Meu leve espanto do início se enfraquece. Vem o tédio. Ou o conformismo, ou a derrota. O mundo é assim mesmo: precisamos de um inimigo para organizar a realidade.

(E só agora me dou conta. Pretendia escrever uma coluna menos pessoal, e completamente diferente da anterior. Mas meu inconsciente me traiu: continuo no mesmo tema, Amizade, só que em seu avesso).

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