Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem

Mulheres e homens: manual de instrução

Cenas de mais uma semana de patriarcalismo e complexo de vira-lata

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Os últimos dias foram intensos na terra brasilis.

Me deu vontade de montar um pequeno filme: algumas cenas, só três personagens. Cenário: CPI da Covid. Começa com o General que esteve no comando durante momentos tensos da guerra. É o trecho mais curto: ele veio, mentiu (deslavadamente) e foi embora. Pôs a culpa em todo o mundo que não ele e disse “não tenho essa informação” muitas vezes. Não foi tratado muito mal. Alguns elogiaram seu trabalho.

A segunda personagem é a médica pró-cloroquina Nise Yamaguchi: a verdadeira Capitã por trás do Capitão. A estratégia geral que buscou em sua defesa, folheando as apostilas escolares desatualizadas ou cochichando com o advogado ao seu ladinho, era de evasão: não sei, não lembro, não é isso que eu disse, isso era naquele momento, não posso afirmar. O plenário se empolgou e passou horas tripudiando a ignorância da doutora.

Foi espetáculo tão forte que até hoje alimenta tretas de celebridades, debates feministas ou de conselhos médicos. O senador que se pensava muito esperto na inquisição acreditou demonstrar que ela não sabia a diferença entre vírus e protozoário. Curiosamente, essa foi uma das poucas informações corretas de seu depoimento, conforme checagem da Agência Lupa. Ou seja, o consenso e o meme que viralizaram revelam duas coisas: nossa ignorância e a ignorância de nossa ignorância. Uma imunologista sabe a diferença entre um vírus e um protozoário. O que ela ainda não sabe muito bem é como escapar da responsabilização por ter feito uma aposta errada no início da pandemia e continuar insistindo nela. No final, nossa personagem não deixou de ser astuta ao cooptar com a imagem de mulherzinha, burra, louca e cínica. Os comentários que fizeram a alegria ressentida das redes foram todos nessa linha.

O filme avança com a terceira personagem: a Médica, baseada em evidências. O discurso era fluido, seguro, científico. Se algum dia a médica apoiou o presidente, sua esposa, seus aliados ou o antiesquerdismo, agora, 2021, ela migra para o campo da crítica. Aceita trabalhar nesse governo mas sente na pele que ali a questão não é nem ciência nem trabalho. O que ela faz de surpreendente em seu depoimento? A rigor, nada mais do que ser porta-voz de um discurso alinhado com os dados mais recentes da ciência experimental contemporânea. Qual a reação generalizada? Que maravilha! Vamos cumprimentar o pai pela filha, seu “técnico” e fiel escudeiro. Que coisa de outro mundo: ela estudou fora e ainda toca piano. Os memes confirmam: “metade do Brasil aplaude entusiasticamente a médica infectologista, a outra metade quer casar com ela”. Quanto patriarcalismo, quanto complexo de vira-lata e que objetificação tão imediata do cérebro pensante de uma mulher, tudo na mesma cena do filme.

Por que nos espantamos tanto com isso? Não deveria ser a norma alguém com conhecimento de causa defender políticas públicas embasadas, ainda mais essas, sabidamente manjadas há meses? Que país é este tão frágil, tão ignorante, tão despedaçado a ponto de se surpreender diante de uma posição adulta e lúcida?

Esse o normal que deveríamos almejar. E de preferência sem sexualizar as mulheres. Como se quis lacrar: “Moral da história: médica rigorosa, honesta e bonita é melhor que médica incompetente, canalha e bagulho”. Ou seja, como escutamos há séculos. Mulheres: bruxas ou musas. Colocar na fogueira ou colocar como objeto do meu desejo: até hoje as estratégias de dominação do feminino. Alguém comparou a fluência, o charme ou o tamanho do pau de Wajngartens ou Ottos?

E, no frame final do filme, voltamos ao nosso General, o menino que faz muita travessura e é sempre perdoado pelos papais. Sim, melhor continuar no poder e ainda com a maior milícia armada do mundo ao nosso dispor.

Qual o nome do filme?

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