Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem

A arte de juntar coisas

Às vezes funciona, às vezes não; pode mostrar algo inédito, ou mesmo nos matar

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“Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes. E o mundo se transforma. As pessoas podem não reparar na hora, mas isso não importa. Mesmo assim, o mundo se transformou.”

Você junta, por exemplo, uma fonte de calor, que produz ar quente, e um grande saco que se abre no céu: assim o homem realizou um dos seus mais antigos sonhos, o de voar. Em 1783, Rozier e d’Arlandes fazem o primeiro vôo controlado em um balão de ar quente, em Paris.

Dois anos depois, o mesmo Rozier e seu copiloto Romain vão atravessar o Canal da Mancha. O químico havia aprimorado o dispositivo. Mas o balão pegou fogo e matou os dois.​

Perfil de um homem branco de cabelos grisalhos, óculos e camisa azul clara, com a mão no queixo usando um relógio preto em uma rua de pedras com casas brancas antigas de janelas grandes
O escritor inglês Julian Barnes durante a 1ª Flip (Festa Literária Internacional de Parati) - Tuca Vieira/Folhapress

“Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes; e às vezes funciona, às vezes não.”

Sim, às vezes juntamos coisas erradas, que podem nos fazer mal e mesmo nos matar. Mas às vezes elas se juntam de forma tal que nos mostram algo inédito. Esse o cerne da criação.

Quase um século depois, um outro francês inventivo, Nadar, juntou balão e fotografia, duas de suas paixões. Tivemos assim a primeira imagem da terra vista de cima.

As citações são do livro de Julian Barnes sobre os níveis da vida, “Levels of Life”, que foi traduzido em português como “Altos vôos e quedas livres” (aliás, não sei por que temos o direito de mudar os títulos, depois do trabalho que dá escolher o nome das coisas que criamos ou pretendemos criar, como livros, filmes, filhos).

Barnes escreveu alguns anos depois da morte abrupta de sua mulher. Eu ganhei esse livro há alguns meses, para me ajudar em uma perda. Comecei a ler e paralisei. Só agora consegui ter a coragem de continuar.

“Você junta duas pessoas que nunca foram juntadas antes; e às vezes o mundo se transforma, às vezes não. Elas podem cair e pegar fogo, ou pegar fogo e cair. Mas às vezes algo de novo é criado, e então o mundo se transforma. Juntas, naquela primeira exaltação, naquela primeira sensação estrondosa de entusiasmo, elas são maiores do que seus dois eus individuais. Juntas, elas veem mais longe, e enxergam mais claramente.”

Essa a essência do encontro. O poder ser mais do que se seria estando só. Encontrar um outro que, não sei como, desperta o potencial que temos. A potência e a própria fonte da pulsão.

Mas o livro não é romântico. É uma espécie de mini “Divina Comédia” invertida: começa com os balões nas alturas; caminha pelo chão, seus palcos e desencontros; e termina a sete palmos abaixo da terra. Como se fosse um balão caindo, um avião perfurando o solo.

O mote se repete. “Você junta duas pessoas que nunca foram juntadas antes. Às vezes é como aquela primeira tentativa de atar um balão de hidrogênio a um balão de fogo: você prefere cair e pegar fogo ou pegar fogo e cair? Mas às vezes funciona, e algo novo é criado, o mundo se transforma.”

Mais do que isso, a consciência humana se transforma. Em 1858, olhamos a terra de cima. Um outro século depois, em 1969, pudemos ver o planeta de um só golpe: a Terra é azul e envolta por nuvens brancas. Realizamos um gigantesco salto epistemológico: vimos pela primeira vez onde estamos.

Não sei por que consegui ler esse livro agora. Talvez pela primavera, que obriga a renascer. Talvez porque neste setembro faz aniversário um livro que escrevi junto com um homem que amei, e perdi. Talvez porque hoje seria o aniversário do irmão que não tive, o filho que minha mãe perdeu. Talvez porque esteja triste. Há 15 dias estava com o ímpeto de luta e apontava homens que se submetem a apanhar por interesse. Eles brindaram, rindo, e renovaram o pacto fáustico. Eles têm mais poder e eu tenho mais impotência. Hoje é luto.

Mas quem sabe um dia possamos juntar duas coisas que nunca foram juntadas antes e o mundo se transforma.

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