Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu machismo

O tabu do sangue

É preciso falar sobre sangue, mulher, menstruação, estigma, vergonha e pobreza

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O sangue é um tabu milenar. Tem gente que desmaia só de ver, ou tirando sangue. Tem religião que não permite transfusão de sangue. Melhor morrer que receber sangue de outra pessoa.

Tem religião que proíbe sexo com a mulher nos dias em que está “impura” (menstruada). E quem tocar nela fica impuro até o dia seguinte. Muitas culturas, inclusive a nossa, estabelecem regras para lidar com essa impureza. Regras explícitas e implícitas.

O conceito de tabu é complexo. Até hoje se tenta desvendar os mecanismos pelos quais determinadas coisas e comportamentos são revestidos pela luz do horror em determinadas épocas. E depois o horror migra para outros objetos e as coisas mudam - deslocamento sempre atrelado a uma virada “mental” mais ampla.

Voltemos à mulher impura. Essa história é muito antiga. A interdição existia em parte por não se saber muito bem o que acontecia (a ignorância é origem de todo horror infundado). Afinal, não tínhamos o conceito de endométrio. Tínhamos a experiência da reprodução e da lua.

No lugar de absorventes, mulheres usam panos e papel higiênico
No lugar de absorventes, mulheres usam panos e papel higiênico - Maria Ribeiro - P&G

Nos anos 70, Judy Chicago, artista americana, criou a Red Flag, título preciso de uma imagem inusitada: o recorte de uma mão com um objeto vermelho entre as pernas. As pessoas demoravam a ver algo tão banal e corriqueiro como um tampão cheio de sangue saindo de uma vagina. Sabe o que a maioria enxergava, meio atônita? Um pênis vermelho entrando numa vagina. Rs. O imaginário fálico realmente nos domina. Na mesma década, Gloria Steinem escreve o ensaio, hoje clássico, “Se os homens menstruassem”.

E se seguiram inúmeras outras reflexões e performances com sangue menstrual. O tabu da menstruação começava a fissurar. E 50 anos depois ainda estamos nessa luta. Há iniciativas com o slogan Let it bleed (Deixa sangrar), numa alusão ao mais que introjetado Let it be. Há o Menstrala Art Movement, que põe esse sangue pra circular em diversos suportes. E também rituais, mais ou menos controversos, como Plantar a lua, em que se busca fortalecer, brotar, nascer, fertilizar. Todas as operações almejadadas pelos seres simbólicos sexuados de sangue quente que somos nós.

A conversa volta à tona com o debate sobre a distribuição de absorventes para mulheres e garotas que não têm dinheiro para comprá-los e às vezes ficam sem estudar, trabalhar ou se infectam com os recursos caseiros que inventam, onerando os sistemas públicos. Curioso que, há três dias, um jornalista do século 14 (inventei o número mas certamente ele e seus pares vivem antes de 1970) partilhou memes usando os mesmos tampões, agora ironizando as mulheres e a biologia. Detalhe: as imagens tinham tampões bem brancos e limpinhos. O tipo de debate ilustra bem a tônica mental em jogo, em todos os escalões: pessoas do século 14 de hoje se acreditam bem corajosas na agressividade virtual mas não podem ver sangue. De mulher então, fogem como o diabo da cruz. Acreditem: o título desta coluna ainda é bem atual. Tabu do sangue e misoginia, em alta voltagem.

De qualquer forma, é necessário, ainda e sempre, romper o tabu. É preciso falar sobre sangue, mulher, menstruação, estigma, vergonha e pobreza. Além de absorventes, externos ou internos, hoje há outros métodos para conter o fluxo menstrual, talvez mais práticos e avançados, como calcinha absorvente, coletor, esponja e absorvente reutilizável. Quais as melhores políticas de saúde pública para lidar com o sangue e como financiá-las? O debate só começou.

Antes tarde do que nunca. O que já ficou tarde demais, neste momento, é a política pública para estancar a privada onde estão sendo escoadas milhares de pessoas, 600.000 ou mais. O sangue não vazava do corpo, mas estava morto.

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