Uma das mais impressionantes criações do engenho humano fica na caverna de Lascaux. Há cerca de 17 mil anos, humanos pintaram centenas de figuras em suas paredes: queriam agradecer e pedir aos deuses uma caçada de sucesso. Agradecer e pedir é a base dos cultos, paleolíticos ou modernos. Isso era comida, laço social e sobrevivência. Normalmente se mede o grau de inteligência do gênero Homo pelo seu nível de cultura (#fica a dica, Brasil).
Logo na entrada há a maior cavidade de todas, o Salão dos Touros, com dezenas deles pintados em suas paredes. A maior figura do conjunto é o "grande touro preto", considerado uma obra-prima da arte pré-histórica. Curioso: ainda parece fazer sentido para nós colocar grandes touros em nossos santuários modernos. O mais recente foi colocado semana passada, na frente da Bolsa de Valores de São Paulo: dessa vez um "Touro de Ouro" sintético. Se o Brasil se ancora numa estética kitsch e imitona, o touro de bronze de Wall Street não é menos representante dessa linhagem. Nós, patriotas, carregamos a marca da vergonha alheia por essa submissão cafona e colonizada.
Como sabemos, a capacidade simbólica humana, antropofágica, engole tudo a seu redor e transforma os animais, os astros, todo o bestiário em projeções de si mesma. Ou seja, os astros somos nós, os animais, os deuses somos nós e as criaturas inexistentes e fantasiosas são também projeções de atributos humanos. Formigas, cigarras, baleias, touros, libélulas, sagitários, escorpiões, celtas, sereias e toda a lista que nem Borges conseguiria concluir. Atributos humanos, demasiado humanos, com seus conflitos, vícios e virtudes.
Se touro é potência e símbolo do rico, porco é a poupança do remediado: o velho cofrinho, como bem lembrou um amigo psicanalista. Antes de inventar a moeda como símbolo abstrato, a terra e os animais eram o que tínhamos para armazenar e demonstrar riqueza. Na hora do aperto ou do casório da filha, sacrificamos um boi.
E eis que hoje a gente tira foto passando a mão no saco do "Touro de Ouro". O testículo é a usina reprodutora de nosso atual sistema de pensamento. O saco de ouro cheio de moedinhas se apresenta como o falo contemporâneo. Sem medo, sem vergonha, sem escrúpulo. O bezerro de ouro está na Bolsa e tudo o que a gente quer é encher o saco cada vez mais. E eliminar quem atrapalhar esse projeto. Ainda estamos nesse estágio de civilização, acreditando que acumulação de dinheiro e o corolário da exploração seria a saída para o mal-estar que nos habita.
O "Touro de Ouro", nos foi dito, representaria a força e a resiliência do povo do Brasil. Mas o povo brasileiro, que andou tendo mais consciência, mais Enem e mais organização, parece ter achado essa formulação muito cínica e contra-atacou, de forma real e virtual. Fez adesivos, pichações, performances e memes sobre o pobre touro de ouro, que passou a dizer "Fome" e "Taxem os ricos". E virou um touro famélico com as costelas aparecendo, como a gente real que passa fome e cata osso e comida vencida no lixo. Fabianos, Baleias, Bibianas e Belonísias manejando tortos arados em suas vidas secas. As crianças famintas que hoje desmaiam em salas de aula. Claro que vão tentar impedir, mas estamos aprendendo a ler, inclusive atitudes.
Escrevo no Dia da Consciência Negra e termino no do Enem censurado. "Touro de Ouro" existe como espelho invertido, como o totem do poder para que consciências e pessoas sejam submetidas. Para que não se tenha, justamente, nem consciência nem conhecimento. Vai funcionar ainda durante quantos séculos?
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